20 de ago. de 2015

Kit Black: Viajantes de Mundos

Terceiro capítulo: Remorso (parte I).

Alyson, acorde”.
Não quero”
Mas precisa. Estamos chegando a Europa”.
Quem é você?”.
Alguém muito especial na sua vida”.
Mas... quem?”.
Não convém que você saiba agora... mas vai descobrir”.
E vai demorar muito tempo para isso?”.
Talvez. Lembre-se que o tempo foi criado pelos seres humanos, na tentativa fútil de dizerem que vivem muito. No fundo, o tempo não existe. Mas isso não quer dizer que você está mais perto de saber quem eu sou ou quem é. A vida é feita de instantes. E o seu ainda está longe de começar. Ainda.”
Eu não gosto de esperar”.
É preciso paciência na arte de aprender. Por isso, também precisa acordar”.
Eu não sei o porquê, mas... às vezes tenho vontade de deitar, fechar os olhos e nunca mais acordar”.
Esse é um pensamento um pouco egoísta. Eu sei o que se passa em sua mente e em seu coração. Também sei porque não quer despertar. Mas acredite, dormir pela eternidade não é o melhor jeito de resolver essa situação. Acredite em mim... Vai passar”.
Tomara que esteja certa”.
Eu estou. Agora você precisa despertar para a vida que segue. Precisa abrir os olhos e enfrentar seus medos, por mais uma vez”.
Alyson abriu os olhos e a claridade inesperada a cegou momentaneamente. Ela piscou repetidas vezes para se acostumar com a luz, se ajeitou na cadeira e espreguiçou-se. Estava pensativa. Perguntava-se de quem seria aquela voz que sempre se manifestava quando ela mais precisava. Nos momentos mais sombrios de sua existência. Na primeira vez que se manifestou parecia ser de uma mulher incisiva, que não tinha receio de revelar sua morte.
Mas desta vez era calma e tranquilizadora. Como a de uma mãe, que se concentra em passar uma lição importante para a filha, da melhor maneira possível. Olhou pela janela e teve a agradável sensação de poder constatar que a Europa estava entrando no seu campo de visão.
Foi tirada da sua admiração por Cloe, que a cutucou com uma caneta. Tinha os cabelos cacheados presos em um rabo-de-cavalo, e segurava uma daquelas revistas de palavras cruzadas. -Bom dia, Bela Adormecida. Pensei que tinha desligado de vez.
-Quem me dera.
-Olha, sem querer me intrometer na sua vida, mas...
-Mas?
-Brigou com o príncipe encantado, foi? -Perguntou Cloe, num fio de voz, enquanto apontava a caneta para Ken.
-Acho que não é tão príncipe encantado assim. Transformou-se num sapo da noite para o dia. -Alyson resmungou, num sussurro.
-Você ouviu o que ele tinha para dizer?
-Ouvi. Por isso estou assim.
-Se eu fosse você, ia conversar com ele. Seja lá o que for que o Ken disse, pode ter sido sem querer. Sem pensar.
-Eu não sei... Estou muito zangada com ele. E não quero perdoar, nem voltar atrás na minha palavra.
-Mas, Ly… -A jovem fez uma cara enfezada ao ouvir o apelido, mas Cloe a ignorou, continuando: -Não deve jogar no lixo uma coisa que você quis tanto conseguir.
-Tem certas coisas que não podem ser perdoadas, Cloe.
-Eu sei... Olha só com quem você está falando, eu nunca fui conhecida por ser especialista em romance. Só Deus sabe quantos erros eu cometi em dois anos. Você só sabe de alguns. Mas você... Sei lá, o Ken te olha de uma maneira que eu sempre desejei que olhassem para mim. Sei que a vida é sua, mas cuidado para não fazer uma escolha da qual você vai se arrepender mais tarde.
-Pode deixar, eu vou pensar bem. Mas não quero falar com ele, por enquanto. Pode dar tudo errado, nós dois brigarmos mais uma vez e a situação pode ficar pior. -Comentou Alyson, levantando-se com Cloe e indo para o pequeno compartimento de cargas, onde estavam alguns alimentos que eles compraram na última parada.
-Mas deixando essa história para lá e voltando para a viagem, vamos descer daqui à uma hora. -Disse Cloe.
-Já?
-Ora essa, você acha mesmo que vamos passar por Paris e não vamos aproveitar a oportunidade?
-Paris, é? -Repetiu, e as duas cantarolaram, brevemente: -Ulala!
-E vamos dar uma paradinha em Veneza também, então não se espante.
-Espantar? Essa é a melhor viagem que eu já fiz na minha vida. -Admitiu Alyson, completando, fechando os olhos e abrindo um sorriso: -Veneza e Paris!
-Não se empolga muito não, é só uma PARADINHA. Lembra, não podemos perder tempo. -Avisou Cloe, abrindo uma lata de Pepsi e colocando um canudo dentro.
-Mas é claro que não. -Se defendeu a jovem, fazendo o mesmo que Cloe e sugando o refrigerante. -Eu nem pensaria em deixar Diamante em segundo plano para passear em Veneza.
-Sabe que não foi isso que eu quis dizer. É que você anda meio distraída, só isso. -Desculpou-se Cloe, pegando um pedaço de bolo junto com Alyson e a acompanhando até a cabine, onde Ken dirigia e Crós tentava explicar os efeitos da poção “luz da meia noite” para Sacha, sem muito êxito.
-Bom dia para vocês. -Saldou Alyson, sentando-se ao lado de Crós. -Por que não tira essa capa, está muito calor.
-Estou bem assim. Acredite.
-Ah, eu acredito sim, se acredito. –Ela retrucou, torcendo as mãos onde minutos antes estava um pedaço de bolo.
-Você tem que se acostumar a acordar cedo, pirralha. Lá na Sede Black você não vai ter essa moleza não, viu?
-Tá me chamando de preguiçosa, é? -Perguntou a jovem, ficando escarlate.
-Não, só estou fazendo um comentário inocente. -Alegou Crós, calmo como se nada tivesse acontecido.
Ken fez um esgar e concentrou-se novamente nos controles da aeronave. Cloe, que havia se encostado na poltrona dele, abaixou a cabeça discreta e murmurou no seu ouvido: -Fica esperto. Vai perder ela se não resolver agir.
-Eu já me acalmei, já refleti e já me arrependi. -Protestou Ken. -Quer que eu faça mais o quê?
-Fale com ela.
-Para quê? Para brigarmos de novo? Olha eu gosto muito dela. Muito mesmo...
-Dá pra ver.
-Mas eu sei que estou fazendo ela sofrer. Entende? Se é melhor para ela ficar longe de mim, então vou me afastar.
-Chegou a essa conclusão faz muito tempo?
-Na realidade, pensei nisso agora.
-Viu só? Você não pensa muito antes de dizer certas coisas. Faz o seguinte: pensa com carinho em todos os detalhes e fala com ela... Não custa nada. -Aconselhou Cloe, e, abaixando mais ainda a voz, avisou: -E de preferência, não demora muito não, porque daqui a alguns minutos vamos descer em Paris. E sabe que aqui está cheio de rapazes lindos e românticos. Se não tomar cuidado, Ken, outro vai acabar pescando o seu peixe.
-Vou me lembrar disso.
-Pro seu bem, acho bom lembrar mesmo. -Ela concluiu, e se afastou.

   
-Aaron! Aaron, onde raios você se enfiou? -Berrava a plenos pulmões uma jovem de 17 anos. Ela parou no meio do corredor, inspirou profundamente e gritou novamente: -AARON!!!!!
-O que foi, o que houve? -Retrucou um homem de 25 anos, cabelos arrepiados e olhos azuis imponentes. -Oi, Dayana.
-Onde você estava, em? Procurei você na Sede Black inteirinha!
-Sala das Máquinas, subterrâneo, ala B. Satisfeita? Agora me explica porque você está berrando o meu nome aos quatro ventos.
-A Iris está te chamando. Disse que é urgente. -Dayana respondeu, prontamente.
-Onde ela está?
-Conversando com o Senhor do Palácio de Granito... Pelo computador.
Aaron deu um sorriso amargo e retrucou: -Estou indo... Por mais que ver aquele idiota me doa.
-Ele não é uma pessoa má.
-É. Mas poderia estar aqui agora se não fosse tão tolo.
-Também acho isso, mas...
-Você é jovem demais para entender, Dayana. Até mais... -E, dizendo isso, se afastou.
Aaron atravessou o corredor, deu um “olá” básico para Taylor (outra integrante da equipe), e entrou na saleta em que ficava o computador. Iris tinha acabado de cortar a ligação com o Palácio de Granito, o que fez Aaron dar um suspiro antes de entrar na saleta. Ele pigarreou para avisar a comandante que havia chegado e foi para seu lado. Iris estava lívida, os olhos fixavam o nada e parecia que um caminhão a havia atropelado.
-Ainda não chegou?
-Ainda não. Isso está me cheirando à encrenca. -Retrucou Iris enrolando uma mecha de cabelo no dedo indicador. -Já mandei o Crós buscá-la há dois dias. Ele devia ter se comunicado.
-Talvez as ondas transmissoras dos nossos comunicadores não estejam conseguindo ultrapassar a fronteira com o Mundo Real. -Sugeriu Aaron, despreocupado. -Sabe que nossas ondas são um pouco diferentes das do lado de lá.
-Claro, claro, sei disso, Aaron. Mas... Sei lá, não estou com um bom pressentimento. Estou encucada desde anteontem com alguma coisa, e não sei com o que.
-Talvez não seja por causa da demora.
-Pois é. Mas é bem melhor prevenir do que remediar. Vou tentar mais uma vez fazer contato. Mas também tem outra coisa que está me intrigando.
-O que?
-Haradja não anda dando sinal de vida. Faz um bom tempo que ela não tenta sair da Torre da Perdição. Não tentou mais botar as patas para fora do seu domínio... É estranho.
-Tenho que concordar. Deve estar tramando alguma.
-Com toda a certeza. Temos que ficar de olhos bem abertos, meu amigo. Arregalados, se preciso.
Aaron assentiu com a cabeça e perguntou: -E quanto à prova de amanhã?
-O Caminho da Ilusão está pronto?
-Quase.
-Sem problemas então. -Alegou Iris, dando um sorriso e completando, outra vez sombria: -Nicolas disse para vocês ficarem aqui na Sede. Haradja pode atacar enquanto eu e Crós monitoramos a prova.
-Você só pode estar brincando se acha que eu vou obedecer a uma ordem dele.
-A ordem é minha. Ele só concordou. Agora anda logo e avisa aos outros. -Ela mandou e virou-se para o computador novamente.
Aaron fez uma careta de insatisfeito, mas não ponderou. Apenas disse um “sim, senhorita”, totalmente desnecessário e saiu da sala. Quando a Iris dava uma ordem, era bom que obedecessem. Todos, de preferência. Você, caro (a) leitor (a) já deve ter ouvido falar no ditado: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo!”.
No caso da Iris, ele se encaixava muito bem. E falando nela, uma sombra de preocupação invadia seu rosto, enquanto fitava sem enxergar a paisagem que formava o papel de parede do monitor.

   
-Droga! -Resmungou Cloe, enquanto massageava a mão que ela havia cortado, sem querer, com uma faca. O sangue começou a brotar do ferimento, fazendo a jovem xingar feito uma possessa. Ela estava tentando desencapar uns fios, e a faca escapou de seus habilidosos dedos, indo cravar-se, como já foi dito, na sua mão esquerda. Lágrimas vieram aos seus olhos, tornando a sua visão um pouco embaçada.
Desse jeito ficava meio difícil ela divisar onde estava a caixa de primeiros socorros, a qual havia deixado ao lado de si por desencargo de consciência. -Mas que droga... -Ela secou os olhos com o dorso da mão boa e conseguiu finalmente ver a caixinha (que estava na posição justamente contrária a aquela que Cloe estava olhando, minutos antes).
Sem se alarmar, pegou rapidamente uma gaze, limpou o sangue, aplicou um pouco de álcool e fechou o ferimento com outra gaze. Passou uma faixa rapidamente para ter certeza de que ia ficar bem seguro, prendeu com esparadrapo e olhou de soslaio para os fios, a maioria desencapada, que tinham feito ela perder seu precioso tempo.
Sem demora guardou-os. Era melhor deixar para outra hora, antes que ela acaba-se cortando a outra mão. Pensou com alegria que logo estaria em Paris. Se você, caro (a) leitor (a) procurar um Atlas vai perceber que nem de longe Paris e Veneza estão em meio caminho da Inglaterra. Não, isso não é um erro de calculo. O que aconteceu é que durante a manhã, Ken e os outros (exceto Alyson, que estava dormindo), receberam um comunicado de uma agencia de voo avisando que seu avião ia passar por aquela rota original, mas ou menos na mesma hora em que eles passariam também por ela. Pra evitar discussões desnecessárias, Ken mudou o rumo, dando a volta, e entrando na Europa pelo espaço aéreo Francês.
Cloe foi para a cabine onde os outros estavam. Alyson tinha o pensamento longe, muito longe mesmo, perdido no vazio da sua própria mente. Ken estava concentrado na direção, como sempre. Sacha fitava tranquilamente as unhas, pintadas de rosa berrante. Crós lia um livro calmamente, sentado na cadeira do co-piloto. O silêncio mortal só era rompido pelo motor do avião. Cloe olhou para um de cada vez e parou junto a Sacha, que tirou os olhos da sua mão dizendo um “oi” para cravá-los na mão enfaixada de Cloe. Fez uma careta de quem não entendeu nada, o que era bem típico.
Ken quebrou o clima estranho avisando, em alto e bom som: -Vamos pousar. -E completando, fazendo voz de comissária de bordo: -Senhores passageiros, por favor dirijam-se aos seus devidos bancos e apertem os cintos.


Todos obedeceram prontamente, dando boas gargalhadas, menos Alyson, que se sentou calada e se afundou em sua “semi-inconsciência” novamente. O hidroavião começou a descer lentamente, e logo eles puderam ver a Torre Eiffel ao longe.

~Kit Black

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