21 de ago. de 2015

Kit Black: Viajantes de Mundos

Terceiro capítulo: Remorso (parte III).


-Uma palavra com dez letras, que começa com I, e a sétima letra também é I.
-Impossível.
-Valeu, Mitaray! -Agradeceu Hiei, completando a palavra cruzada que estava preenchendo e mudando de página.
-Eu estava falando de você.
-Não sou tão insuportável assim. -Se defendeu o rapaz, lançando um sorriso zombeteiro ao amigo.
-É porque nunca experimentou ficar sozinho consigo mesmo. -Rebateu calmamente Mitaray, encostando a cabeça na janela e olhando para fora. Uma floresta desfilava em alta velocidade pelos seus olhos.
Os dois estavam num trem expresso, indo direto de Vadolfer para Farem, onde se localizava a Sede Black. Estavam em uma cabine vazia, Um em cada banco... O resultado era que ficavam se encarando o começo da viagem, até Mitaray abrir um livro (intitulado “Dragom, o Reino dos Dragões”), e Hiei puxar da bolsa uma revistinha estilo Coquetel.
Eram quatro horas da tarde, e uma nuvem densa e escura cobriu o sol. Um vento gelado começou a soprar, fazendo com que Mitaray fechasse completamente sua janela. Hiei fez o mesmo. Um trovão ribombou ao longe. Mas nuvens se juntaram, tapando completamente o sol. Raios apareciam ao longe, e logo uma chuva forte desabou sobre quase toda Diamante. Mitaray cravou os olhos no amigo, que abaixou imediatamente a revista. Gritos estrondosos e assustadores ecoaram pela tempestade.
-Silfos da tempestade. -Murmurou Mitaray.
-Estranho. O céu estava azul, sem uma nuvem... E, do nada, uma tempestade sinistra cai. -Comentou Hiei.
-Isso não é bom. Tempestades repentinas são sinais de mau agouro. Ainda mais com essa quantidade de silfos. Pode sentir? Na alma da tempestade há dor, há sofrimento... Perdição.
-Seres está chorando. Por que será?
-Não sei dizer. Mas para uma Deusa chorar, o motivo tem que ser muito sério. -Disse Mitaray, e outro grito lacerante veio da tempestade, junto com outro trovão. A deusa da água, Seres, chorava e lamentava e ninguém, alem dos outros deuses, imaginava o porquê.
-Uma expressão que começa com N. -Pediu Hiei, para amenizar o clima, abrindo outro sorriso... Desta vez amargo. Uma vez que Seres chorava, Diamond inteira sentia a sua dor.
-Não enche! -Respondeu Mitaray, reabrindo o livro.

   
-Ai!
Alyson deu um berro, e se contorceu mais uma vez.
-Você pode ficar quietinha por um minuto! -Pediu Crós, enquanto abaixava a cabeça da garota pela décima vez seguida.
Eles estavam no hidroavião, tentando dar um jeito no machucado que se abria na cabeça da garota. Sacha e Cloe tinham saído para comprar umas lembranças da cidade. Ken estava sentado confortavelmente no banco, observando as tentativas de cura do feiticeiro. Crós havia mandado Alyson sentar num banco e abaixar a cabeça, E tinha entrado no vão entre as costas desse banco e o detrás. Tinha pegado no bolso uma erva que disse se chamar Alancia, e um tempo depois colocou por cima do ferimento. E começou a dizer um feitiço, algo como:

Osso quebrado, ordeno que se junte;
Veia torcida, ordeno que se desenrole;
Ferida aberta, ordeno que se feche;
Dor insuportável, ordeno que acabe;
Corpo cansado, ordeno que se cure.

Infelizmente, toda vez que ele chegava à segunda frase a jovem sentia dor e se mexia, quebrando a concentração do mago e fazendo-o repetir tudo outra vez.
-Seu insensível, isso dói, ta? Já viu o tamanho do rombo que aquele desgraçado me fez?
-Estou tentando te ajudar.
-Poderia deixar eu me curar sozinha. Tenho uma recuperação física muito rápida e defesas muito fortes...
-Uma ajuda a mais não vai fazer mal algum. E acha que essa defesa pessoal é muito boa? Conheci gente igual a você que pegou uma infecção séria por causa de avantesmas e sabe onde estão? Sete palmos abaixo da terra. Não quer morrer de novo, quer?
-Não, obrigada, uma flechada no coração já é suficiente. -Replicou Alyson, parando de se mover por alguns segundos. Logo outro grito de dor e nova interrupção forçaram Crós a parar. Uma onda de indignação passou pelo seu rosto descoberto.
-Pode parar de se mexer? -questionou ele, sem a mínima paciência.
-Não posso evitar. São atos-reflexos. -Desculpou-se ela.
-Eu adoraria te ajudar. Mesmo, mas se continuar se contorcendo eu nunca vou chegar ao final do feitiço. Capite? Tente relaxar!
Ela fechou os olhos e abaixou a cabeça outra vez. De repente, aquela voz suave entrou no seu pensamento, novamente. E começou a falar:
Já se resolveu?”.
Estou confusa. Ele mentiu para mim. Pode me entender?”.
Humanos mentem”.
Mas ele errou. E feio, dessa vez”.
Humanos erram”.
Quero perdoar, mas ao mesmo tempo não quero. Ele parece perfeito para mim às vezes, e em outras parece não ter nada a ver.”
Humanos são imperfeitos”.
Sei disso”.
Mas esquece”.
Você tem razão. Posso te chamar de você?”.
Pode me chamar do que quiser, por enquanto”.
O que eu devo fazer? Estou tão confusa”.
O que achar certo”.
Não sei”.
Pense”.
Acho que ele é o certo”.
Você está no caminho correto... O caminho do seu coração”.
E se ele não for o certo?”.
Saberá o que fazer. Mas quando os humanos aprendem a olhar para dentro de si mesmos, quando ouvem seu coração, aprendem a seguir seu caminho, a evoluir, a ter o poder de mudar seu destino. Enquanto seguir esse caminho, nada, nem ninguém, poderá o impedir”.
Um dia vou chegar a esse nível?”.
Um dia”.
Estou preocupada. Não sei porque. Talvez seja o fato de eu ter que deter uma imortal. Ela é uma assassina. Tem sangue frio, poder, vida eterna. Tem muitas coisas que eu não tenho. Como posso vencer se sou tão inferior?”.
Comece se perguntando o que você tem que ela não pode ter. Mas não é isso o que você procura”.
Como assim?”.
Não é com isso que você está preocupada”.
Eu não sei. Ainda a pouco eu pensei ter ouvido um barulho de chuva, de berros horríveis, por dentro de uma tempestade. E uma tristeza muito grande tomou conta de mim”.
Crós também pode sentir. Fique do lado dele. Ele entende o porquê, pois nasceu em Diamond, e Diamond é parte dele. Quando Diamond ou seus Deuses sofrem, os fiéis a eles podem sentir”.
O que está havendo?”.
A Deusa da água está chorando”.
A voz calou-se, e Alyson entendeu que ela tinha se recolhido às profundezas de sua mente. Um último conselho passou como um lampejo em sua mente.
Pode abrir os olhos. O feiticeiro terminou a magia agora”.
Ela reabriu os olhos, e sentiu como se tivesse dormido uma noite inteira. Sua cabeça não doía mais. Não havia mais sangue... Não havia mais nada. Ela passou a mão delicadamente pela cabeça, e Crós disse o que ela se recusava a acreditar: -Não há mais ferimento. Ele sumiu... Completamente.
Ken tentava esconder a surpresa, mas não era muito eficiente nisso. A garota virou-se imediatamente, abrindo um sorriso radiante e deu um beijo na testa do mago. Esse ficou meio pasmo por alguns momentos, depois deixando um sorriso cintilar pelo seu rosto. Passou sua mão pelos cabelos dela, bagunçando-os mais ainda.
-Você vai me ensinar, não é?
-O quê?
-Esse feitiço. Por favor. -Pediu Alyson, piscando os olhos com carinha de anjo.
-É muito complicado...
-Eu me esforço. Crós, por favor...
Ele pareceu pensar por um minuto. -Bom, levando em consideração que você é atrapalhada e que vive se machucando... Está bem.
-Sério? -Perguntaram Alyson e Ken juntos. Ela com admiração, ele chocado.
-Sério. E caso consiga utilizá-lo com perfeição, eu ensino os outros. Você vai ser, como eu posso dizer? Minha aprendiz.
-Jura? -Ela questionou, enquanto Ken sussurrava para si mesmo: -Socorro.
-Juro. Palavra de feiticeiro. Afinal, Iris sempre me disse para procurar uma cobaia para eu ensinar.
-O que você quer dizer com cobaia? -Gaguejou a jovem.
-Foi uma aposta que os outros integrantes da Equipe fizeram em mim. Aparentemente era o grupo que achava que o meu primeiro aprendiz ia se transformar em uma pessoa poderosa e importante contra...
-Contra? -Perguntou, já começando a mudar de ideia.
-Os que achavam que o meu primeiro aprendiz ia acabar em pedaços, tentando produzir uma das minhas complicadas formulas.
-Em que lado a Iris estava?
-Do meu. O lado Super-herói. E junto com ela estava o Aaron, a Dayana e o Senhor do Palácio de Granito. À minha esquerda... -E ele deu um sorriso besta. -... Ou do lado do “defunto”, estavam a Taylor, a Pandora e o Dave. Na realidade, a culpa disso tudo é do Dave.
-Senhor do Palácio de Granito? -Perguntou Ken, interessado.
Crós olhou para cima como se aquilo fosse algo que não quisesse lembrar e retrucou baixo, virando-se e saindo do hidroavião: -Isso foi há muito tempo.
Alyson o acompanhou pelo vidro dianteiro do avião e suspirou profundamente, enquanto Ken se aproximava dela. Foi recebido com um tapa na cabeça.
-Hei... Por que fez isso? -Ele resmungou, esfregando o local atingido.
-Você tinha que perguntar? -Acusou ela, cruzando os braços. -Não está vendo que eu estava tentando animar ele?
-Parecia estar tentando convencer. -Disse o rapaz. -Animar por quê?
-Você não acreditaria em mim. -Ela alegou, sentando num dos bancos. Ele se sentou ao seu lado.
-Tente explicar... E eu prometo que tento entender.
-Ta. Mas é complicado. E estranho.
-Por favor, eu tive um mestre que podia viajar pelos três mundos e você vem me dizer que algo é estranho demais?
-Tem uma voz na minha cabeça, Ken. Eu estava conversando com ela enquanto Crós fazia o feitiço... Por isso que eu “sosseguei”.
-Sério? Parecia que você tinha apagado.
-Ele pediu para eu relaxar. Essa coisa... Seja lá o que for, está tentando me ajudar. E ela disse que Crós estava triste. Estava sofrendo por causa do que estava acontecendo em Diamond.
-O que está havendo?
-Eu fiz a mesma pergunta.
-E o que ela respondeu?
-Que a Deusa da água está chorando.
-Meu mestre disse algo sobre isso uma vez.
-O que ele disse?
-Que para a Deusa da água chorar precisa de um motivo muito forte. E que quando ela chora, o que é raro, mesmo o dia mais claro é imediatamente coberto por nuvens negras, e uma tempestade arrepiante se forma. E que criaturas invisíveis para pessoas com olhos comuns gritam e choram, junto com a tempestade, espalhando a dor por onde ela passa. -Contou. Ela o fitou demoradamente, aparentemente amedrontada.
-Não foi apenas sobre isso que ela falou. Digo “ela” não porque é uma voz, mas porque tem um tom feminino. E eu tenho certeza que ela é uma mulher. -E dizendo isso ela fez o sinal de aspas com os dedos. E completou: -Preciso falar com você.
-Ela mandou?
-Não exatamente. Ela disse para eu seguir meu coração. E não sei ao certo o que ele está dizendo agora, mas... Preciso falar com você.
-Vai ficar com seu amiguinho romântico francês? -Perguntou ele, com um sorriso triste.
-Nem pensar! O que fez você pensar nisso?
-Ele está dando em cima de você desde que te percebeu. E por um breve momento achei ter visto algo como uma... Cumplicidade.
-Achou errado.
-Em todo o caso, preciso admitir...
-Que você não gosta de mim? Não precisa, já me jogou isso na cara horas... -Ela foi interrompida por um beijo rápido.
-Eu menti. Duas vezes.
-Me... Mentiu, é?
-Quando disse que não confiava em você... Eu estava fora de mim, não sabia o que eu estava dizendo. -Ele segurou as mãos de Alyson nas suas e continuou. -Confio a você até a minha vida, se for preciso. Mas tenho medo... De acordar um dia e descobrir que você desapareceu, de ver você morrendo outra vez e não poder fazer nada, de fazer você sofrer sem necessidade... Eu tenho medo de muitas coisas não é? Mas é porque eu te amo. Tenho pavor de perder você.
-Demonstra muito bem. -Alegou, com um sorrisinho torto. -Que engraçado...
-O que é engraçado? -Retrucou Ken.
-Também te amo.
-Posso perguntar qual é a graça nisso?
Ela deu uma risadinha: -É difícil de explicar. Às vezes, quando esperamos muito por algo... Quando queremos muito algo, parece impossível de se conseguir. Mas quando conseguimos... Sei lá, parece que é brincadeira. Frustração.
-Você está esperando algo que não vai vir. Porque eu juro pela minha alma que tudo o que eu acabei de dizer é verdade. A mais pura verdade.
-Sei que é. Confio em você. -Ela o abraçou docemente. O rapaz corou, surpreso. Ela era previsível... Pelo menos na maioria das vezes.
-Posso te fazer uma pergunta?
-Qual?
Ken abriu um sorriso de escárnio (o que significava que era alguma bobagem), e perguntou: -Sou seu namorado agora?
-Bobo.

~Kit Black

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