3 de set. de 2015

Kit Black: Viajantes de Mundos.

Terceiro capítulo: Remorso (parte VI).

Aaron e Pandora entraram na grande sala. A primeira coisa que fizeram foi cumprimentar Hiei e Mitaray. A segunda foi dizer em um tom alegre: -Eles estão vindo. Vão chegar bem na hora!
Iris abriu um sorriso breve. Com aqueles dois podia contar. Eram os mais competentes ‘caçadores de informação’ que tinha. Aaron era o engenheiro da equipe. Seus olhos azuis não deixavam passar nenhum detalhe. Os cabelos negros e arrepiados lhe davam um ar mais jovem, embora tivesse 30 anos. Guardava para si um sentimento muito forte com relação à colega que agora estava ao seu lado.
Pandora tinha tudo para ser uma simples mortal ou já estar morta. Seu corpo era escultural, mas nem um pouco forte. Sua habilidade com armas de “curto alcance” era mínima. Além de tudo, ela nascera cega.
Apesar disso, ela era uma das melhores estrategistas da equipe. Seu cérebro trabalhava absurdamente rápido. Seu corpo pequeno lhe permitia sair de quase qualquer enrascada. E, embora não pudesse enxergar, ela sentia com tanta intensidade que podia atirar num alvo a metros de distância com seu poderoso arco e flechas. Sua audição, tato e olfato funcionavam assustadoramente bem, e com isso ela podia viver e fazer qualquer coisa que alguém que enxergasse podia. Não sentia falta de ver o céu, ou o inimigo, ou as crianças. Só havia uma única coisa que a perturbava em não enxergar. Não poder ver o mar.
Crescera ouvindo histórias sobre como era bonito, misterioso e perigoso. Nascera em Farem mesmo, no litoral, o que explicava sua pele morena. Era filha de um guerreiro habilidoso e marinheiro nato. Era um homem rude, sempre com feições sombrias em sua face enrugada e coberta por feias cicatrizes. Mas amava a filha. E sofreu muito quando ela fora raptada e levada para longe dele. Adoeceu, e não viveu o suficiente para ver a bela filha retornar, salva por um antigo feiticeiro: Crós.
Ela ingressou na equipe logo depois, convidada pelo próprio feiticeiro. Crós não lhe ensinou truques, nem mágicas, nem tampouco curas. Porém, foi o primeiro que acreditou nela. E, graças a ele, Pandora achou o seu lugar, e desenvolveu todos os talentos que, até agora, ninguém vira.
O mar... Como queria poder vê-lo! Mas havia ainda mais uma coisa que ela desejara ver... O rosto do homem que estava ao seu lado naquele momento, explicando qual foi o esquema que usaram para rastrear Crós e a garota no Mundo Real. O homem que a fazia rir com bastante frequência, que sempre estava lá quando ela mais precisava, que inexplicavelmente se calava todas as vezes que ela falava a palavra ROMANCE ou AMOR, embora soubesse que ele estava olhando para ela, de uma maneira diferente... Especial.
Ela sempre sabia quando Aaron a olhava daquele jeito. Queria poder ver esse olhar. Quando o conheceu, a primeira coisa que perguntou foi algo do tipo “pode me dizer como você é?” Ele sorriu e lhe disse: “olhos azuis, cabelo negro arrepiado”.Foi até modesto. Cores não significavam nada para ela, e ele deve ter realmente percebido isso, pois se apressara em dizer: -Não que seja muito importante.
Pandora virou-se para ele e perguntou: -Você disse cabelos negros?
-Sim. –Respondera ele. –Por quê?
-É a única cor que posso distinguir. É tudo que eu posso ver. Pelo menos vou ter algo para me agarrar... Algo para me servir de exemplo. –Ela parou. Ele não dissera nada. Começara assim... Seus silêncios abruptos e aconchegantes que ele fazia toda vez que se falavam. –Quando perguntei como você é, quis dizer por dentro.
Os olhos de Aaron brilharam, como incendiados por uma centelha de compreensão. Nunca conhecera alguém que pudesse ser tão simples e maravilhosa ao mesmo tempo. Sorriu mais uma vez e respondeu: -Chato pra caramba, inteligente, mas nem tanto... Não penso muito antes de falar, não sou tão corajoso como deveria...
-Esqueceu de algumas coisas.
-O quê?
-Sua sinceridade... Modéstia... Honestidade... E, finalmente, sua gentileza.
Desde então, um passou a prestar atenção no outro mais detalhadamente. E, apesar de nunca terem dito isso um para o outro, a cada dia que passava começavam a se amar um pouco mais…
-E então? Como conseguiram? –Interrogou Taylor.
-Primeiro fizemos o computador canalizar a energia dos portais entre o nosso mundo e o Real. Depois, juntamos a energia gerada pelo comunicador de Crós. Então, usamos um pouco de eletricidade para criar uma ponte entre o computador e o comunicador dele. Conseguimos entrar em contato.
-Sério? –Iris precisou agarrar Dayana pela gola da camiseta, antes que começasse a pular de alegria. A sala já estava carregada de energia suficiente para criar uma bomba nuclear.
-O contato foi rápido, mas Salem disse que ele e os outros já estavam chegando. -Pandora respondeu, se libertando de sua semi-inconsciência. Ela era a única que só chamava Crós pelo segundo nome. Sempre o chamava assim, pois foi o único nome que entendeu quando ele salvou-a dos sequestradores. Estava tão esgotada que não conseguia fazer perguntas, nem pedir para repetir. Mesmo depois disso, ela insistiu em chamá-lo apenas de Salem. E como ele gostava mais do segundo nome do que do primeiro, aceitou isso de bom grado.
-Os outros...? –Questionou Iris, sem entender.
-Sim, os outros. É uma história meio complicada de se explicar, porque Salem não teve a oportunidade de contar, sabe...
Todos se entreolharam rapidamente.
-E, pessoalmente, creio que estão do nosso lado. –Ela hesitou, e sentiu algo apertar sua mão com força... Conhecia aquele toque. Seu companheiro inseparável tinha ouvido a insegurança em sua voz e afagava a sua mão sutilmente. Esquisito... Ele nunca a tocara assim antes, sem que fosse realmente necessário. O coração disparou. Ela conseguiu se manter controlada e passou a mão pelos cabelos loiros e longos. Os olhos brancos procuravam o rosto que não podiam contemplar, por mais que quisessem. Uma onda de vertigem apoderou-se do seu corpo. O que raios estava acontecendo?
Dois olhos azuis olhavam seu rosto, incrédulos. Vários pares de olhos viraram-se para ela no mesmo instante. –Você está se sentindo bem, Pandora? –Questionou Iris.
-Estou... Eu estou. Só preciso descansar um pouco. -Seu corpo doía como se milhares de flechas tivessem a transpassado. Ela largou a mão de Aaron e se moveu para fora: -Boa noite.
Ela saiu apalpando a parede do corredor, sentindo dor, angustia e medo... Como se estivesse morrendo...
Os colegas observaram a amiga sair da sala preocupados. A líder virou-se para Aaron, perguntando: -O que você fez?
-Nada. –Respondeu ele.
-Tem certeza?
-Absoluta. Ela parou de falar e eu segurei sua mão... Mais nada.
-Vá ver como ela está, Aaron. Parecia muito pálida.
Ele não esperou que ela repetisse... Deu meia volta e entrou no corredor escuro. Seus passos ecoaram no silêncio.
-O que ela tem? –Questionou Mitaray, incomodado. Nunca vira Pandora agir assim antes.
-Eu não sei. –Confessou Iris. –Começou a ficar assim há duas semanas. Temo que esteja doente.
-Eu examinei, e não achei absolutamente nada de anormal. –Alegou Taylor, que era quase médica.
-Estranho...
-Bastante. Mas vocês também precisam repousar. A prova amanhã será dura. –Ela virou-se para eles, o rosto se fechando numa careta. –Tem um quarto vago, no segundo andar. Venham, eu mostro para vocês...
Eles subiram as escadas a sua frente e chegaram a um corredor mais iluminado do que o do primeiro andar. Andando calmamente, Iris conduziu-os até o seu final, onde ficava o quarto menor, desocupado a longos 8 anos.


Aaron disparou pelo corredor. Ela não poderia ter feito o percurso inteiro tão rápido, a menos que...
Ele retornou e entrou na primeira porta, a que dava para a sala do computador. Acendeu as luzes. Pandora estava caída no chão, parecendo morta. Correu até ela e se ajoelhou ao seu lado. Já ia gritar por ajuda quando foi interrompido.
-Aaron... Não. Não grite, por favor. Estou escutando gritos demais ultimamente. –Ela murmurou, abrindo os olhos.
-Pandora... –Ele suspirou, aliviado. Um quê de raiva encobriu sua voz quando voltou a falar. –Mas que raios, você quer me matar do coração?
Ela puxou a mão dele enquanto tentava se levantar. –Por quê está tão zangado? –Murmurou, se apoiando na parede com dificuldade.
-Não estou zangado. –Mentiu ele.
-Está sim. Posso ouvir a raiva na sua voz. –Ela tentou dar um passo à frente e se desequilibrou. Ele a tomou nos braços, antes que caísse. Tenso, tentou olhar o rosto dela. Estava realmente muito pálida. Mas isso não a impediu de repetir a pergunta: -Por quê está tão zangado?
-Pensei que estivesse morta.
-Também pensei.
-O quê?
-Ando sentindo coisas estranhas... Ouvindo gritos. Isso não pára nunca. Acho que estou ficando louca.
-Deve estar doente... Mas louca, eu duvido.
-Acho que vou morrer... Em breve.
Ele sentiu uma pontada forte no coração. E se fosse verdade, o que faria? Tentou não pensar muito nisso. –Deixe de dizer sandices. Você vai ficar bem.
-Você não entende... Eu sinto que estou morrendo aos poucos. Sinto flechas invisíveis me perfurando, e a dor... Você não tem ideia do quanto dói.
Aaron arfou baixo. De repente, estava soluçando, lágrimas salgadas escorrendo pela sua face. Ele podia sentir. Não queria acreditar, mas sabia que estava próximo... Ainda abraçado com Pandora, sentiu ela se remexer em seus braços e encontrou os olhos dela. Vazios, sim, é claro, mas toda vez que via aqueles olhos sentia como se ela estivesse mesmo vendo-o.
-Pare de chorar por minha causa. Não gosto de te “ver” assim.
-Você não pode ver.
-Posso sentir. Pare de chorar. Por mim...
-Não posso.
-Por quê?
-Você não entenderia.
-Aaron...
Ele encostou a testa na dela, se controlando o mais que podia. Chega de fingir. Chega de esconder. Engoliu em seco, repetindo para si mesmo a frase que pensara em dizer a mais de 8 anos: -Eu te amo.
O silêncio o cercou. Olhou novamente para baixo, para a frágil garota em seus braços. Ela continuava com os olhos direcionados para o seu rosto. Mas aqueles olhos, geralmente tão doces, agora estavam tristes. Mais um minuto e Pandora também chorava. –Eu também te amo. Não quero deixar você...
Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça, procurando os lábios dela. Sentiu sua leveza enquanto ela retribuía o beijo, com urgência. Se soubesse que tinham tão pouco tempo, teria aberto o jogo antes. Aaron a abraçou mais forte, o rosto molhado por lágrimas teimosas, que se recusavam a ficar em seus olhos amedrontados.
Alguém iria arrancar o tempo deles. Arrancaria aquele momento perfeito, ao qual tinham esperado tanto. Mas ele ia lutar! Ia vender caro a sua pele. Seja lá o que fosse que estivesse querendo matar Pandora, teria que lhe enfrentar primeiro.
Mas o que ninguém sabia era que Pandora podia adivinhar o futuro. E que ela não tinha visões, mais sim sentia tudo o que estava por vir. Ouvia tudo... E, a “visão” que tinha, era realmente de sua morte. E que ela se realizaria mais cedo do que poderia imaginar... E que Aaron não estaria lá para chorar por ela, pois também teria partido…

   
Alyson olhou para Crós. Ele balançava o comunicador negro com energia: -Lata velha, porcaria, monte de sucata! Vamos, volte a funcionar!
Balançou a cabeça, como quem diz “eu não estou vendo isso”. Seus olhos buscaram Ken. O rapaz mantinha-se concentrado em pilotar, mas um breve sorriso de escárnio estava desenhado em sua face. Cloe manifestou prontamente a sua opinião, que também passara pela cabeça dele: -Bem vindo à nossa piada particular do Mundo Real... Os aparelhos sem fio estão sempre fora de área.
Crós pensara em atirar o aparelho longe quando lembrou o que Taylor provavelmente diria: “Acha que o dinheiro que vem do Palácio de Granito para financiar nossas ações nasce em árvores?”. Respirou fundo e retrucou: -Eu definitivamente odeio esse lugar.
-Tá, não precisa exagerar. Não é tão ruim assim. –Alegou Alyson, remexendo na mochila que trouxera, procurando o aparelho de MP3 que tinha jogado lá dentro no dia anterior.
-Deixe de ser hipócrita, você não gosta desse mundo mais que eu. –Protestou ele.
Ela parou para pensar um instante e respondeu: -Verdade. Eu definitivamente detesto toda a corrupção, violência e falta de amor-próprio que enche este mundo hipócrita. Mas eu nunca conheci um lugar melhor... Antes um mundo perdido e caindo aos pedaços do que nada.
-Não culpe o mundo em si. Culpe os próprios humanos que fizeram isto com ele. –Alegou o feiticeiro, solenemente.
-Pensei que você estivesse fazendo exatamente isso...
-Pensou errado.
Ela desistiu de discutir e deu de ombros. A voz suave de Ken chegou nos seus ouvidos.
-Se serve de consolo para vocês dois, também abomino esse mundo criado por seres humanos hipócritas.
-Tá aí uma coisa que eu não esperava ouvir. –Falou Cloe.
-Se tivesse tido uma vida igual a minha, aposto que concordaria comigo.
-Não precisa ser grosso... Eu entendo o seu lado. O que eu disse sobre falar antes de pensar?
-Desculpe.
-Pessoal, vamos tentar acalmar os ânimos, ok? –Pediu Alyson, completando animadamente: –Achei!
-O que? –quis saber Ken.
-O aparelho de MP3 que estou procurando há uma hora. –Ela disse calmamente, enquanto sentava novamente e colocava os fones de ouvido.
-Não vai dormir?
-Estou muito agitada para isso. Você não?
-É, bastante. –Ken piscou os olhos, cansado.
-Por que não diz logo “não”?
-Porque não quero parecer indiferente e muito menos ferir seus sentimentos.
-Esse cuidado todo está começando a me assustar... -Ela comentou, fitando as costas dele, enquanto trocava de lugar com Crós, assim como na noite anterior. Ele recostou-se na cadeira do co-piloto e virou a cabeça para olhá-la.
-Nunca mais vou discutir com você.
-Quando o fizer, saberei que voltou ao seu normal.

Ele riu levemente, mas não respondeu.

~Kit Black

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