Primeiro capítulo: Uma mente bem
diferente (parte II).
Alyson acordou na manhã seguinte com
um pressentimento de que algo ia dar errado. E parecia estar certa, pois logo
de manhã sua mãe lhe disse, com a voz mais natural do mundo: -Preciso ficar
duas semanas fora. Você vai ficar bem,
não é?
A garota se engasgou com uma
rosquinha e olhou a mãe com cara de quem não entendeu: -Como é que é?
-Trabalho, duas semanas fora...
Entendeu?
-Mas não tem nem uma semana que a
senhora voltou de São Paulo!
-É que tenho que acompanhar o senhor
Reverton numa palestra em Brasília.
A moça nada disse. Sabia muito bem
que a sua mãe precisava comparecer a essas reuniões mal previstas, e até
gostava de se sentir livre de vez em quando. O caso era que Leah trabalhava
como secretária, no escritório de uma das empresas mais prestigiadas do país. O
seu patrão, Reverton Oflerrert, era constantemente chamado para compromissos e grandes
eventos, e como Leah é a sua secretária mais competente (ele tem mais uma),
Reverton sempre a levava consigo. Esse emprego é a maior causa da “rixa” entre
Leah e o pai de Cloe, James Grey. Antes dele se mudar, quando os dois se viam
freqüentemente (querendo ou não), ela dizia que o trabalho dele é pretexto de
vagabundo. Ele é um arqueólogo famoso, e revida falando que é melhor ser
“preguiçoso” do que viver dentro de um escritório fechado, servindo cafezinho
pra meia dúzia de colegas. Melhor eu parar por aqui não é?
Alyson continuou a refletir sobre a
viajem da mãe, dando a ela a oportunidade de terminar seu café com leite. Um
tempo depois ela se levantou e perguntou, despreocupadamente: -Vai hoje?
-Sim vou hoje.
-Agora?
-Agora. Por quê?
-Por nada. –Mentiu a garota. Teve a
ligeira impressão de que ia demorar muito tempo para elas se encontrarem depois
dessa separação.
-Algum problema? Ou só quer saber
para ter tempo de aprontar alguma?
-Claro que não!
-Pensei. Mas é claro que você não
aprontaria nada. Enfim... Preciso ir!
-É, a senhora não pode se atrasar.
-Quer alguma lembrança?
-De que? -Perguntou a garota,
distraída.
-De Brasília.
-Nada.
-Está bem.
As duas se dirigiram pra fora de
casa. Leah deu um beijo na filha e entrou em sua pick-up negra, acenando com a
mão. Cinco minutos depois o carro sumia numa curva, deixando Alyson sozinha. A
garota ficou alguns minutos na porta de casa olhando o ponto, e já ia entrar
quando a voz de Ken rompeu o silêncio.
-Esqueceu de mim?
-Gostaria imensamente que você
parasse de aparecer do nada.
-Tá, vou embora. -Alegou o garoto,
virando-se e se preparando para ir mesmo.
-Não vai, não, eu só estava
brincando.
-Sei. Mas eu tinha que entregar a
carta, você se lembra?
-Lembro, lembro sim.
Ken entregou a carta, que Alyson
abriu em segundos enquanto Sentava-se num banco atrás de si.
-Posso ver? -Perguntou ele, indo para
trás do banco.
-Pode. -Respondeu Alyson, e voltou
sua atenção para o papel:
Cara
Alyson,
Desculpe-me
pelo tempo que eu demorei a escrever novamente. As coisas andam meio estranhas
ultimamente, e devo destacar que, se estou dizendo isso, é porque estão
estranhas mesmo. Por exemplo, ontem eu achei ter visto um lobo roxo (juro por
Deus!), caminhando no meu jardim. E Sacha me ligou hoje de manhã, falando que um
pássaro cor de fogo tinha entrado no quarto dela de noite e a acordado.
Alyson parou por alguns instantes.
Cloe tinha posto a data do dia em que escreveu a carta no envelope, com uma
caneta roxa fosforescente (com certeza para chamar a atenção de Alyson para
ela), e a data era de uma semana atrás. Justamente quando um gato preto havia
pulado sobre ela e espalhado o trabalho de um fim de semana inteiro: O seu
texto sobre mundos paralelos e porque poderiam existir. A professora de
português tinha passado esse trabalho no último dia de aula, antes das férias
do meio do ano. O desafio era escolher uma idéia extraordinária que todos dizem
ser impossível, escrever sobre ela e apresentar um argumento pelo qual pudesse
dizer ou provar que essa idéia possa ser real. Balançou a cabeça e recomeçou a
ler.
Apesar
de essas aparições estarem todas ligadas (eu acredito), não é por isso que eu
estou escrevendo. Dessa vez tenho boas notícias, garanto. Uma delas é que vamos
nos encontrar em breve: Consegui, com muito custo, convencer meu pai a voltar
pra Petrópolis. A outra é que Naoco foi transferida para uma firma brasileira,
e vai voltar também. A firma fica no Rio de Janeiro, portanto não vai ficar tão
longe assim. Gostaria de falar mais, entretanto estou ocupada tomando conta
daquela peste da Karolaine, você sabe, minha prima, e daqui a uma semana
estarei aí. Não esqueça! Agente se vê em breve!
Sua
amiga, Cloe.
Alyson demorou um pouco para
processar os fatos. Quando se tocou, levantou do banco num pulo, acertando sem
querer o queixo de Ken.
-Desculpe. Machucou?
-Não, imagina, você me dá quase um
murro e não vai doer.
-Também, quem mandou ficar atrás de
mim? Não se sente envergonhado de ficar lendo a correspondência dos outros não?
-Você deixou, esqueceu?
-Aa é, eu deixei! -Replicou ela, como
quem diz “foi mal”.
-Eu esqueceria isso se você me desse
um beijo.
-Você é muito convencido mesmo!
-Não sou. Mas ainda quero um beijo
seu.
-Vai ficar querendo. -Retrucou
Alyson, empurrando a testa dele com o dedo indicador.
-Espera, espera! Está dolorido.
-Pensei que eu tinha acertado o
queixo.
-É né. Falando nisso está sangrando?
-O que? -Perguntou Alyson, já sem
paciência.
-Meu queixo, minha boca... Acho que
eu mordi a língua.
-Se tivesse mordido a língua, não
estaria tagarelando! -Riu ela.
-Zomba bastante da desgraça dos
outros.
-Vai, me deixa ver se eu quebrei um dente
seu. -Debochou a garota, levantando a cabeça de Ken e movendo delicadamente de
um lado para o outro, tentando ver se ele sentia dor mesmo. -Só está inchado,
vai ficar b...
Ela nem chegou a terminar a frase,
pois antes que tivesse percebido o movimento, Ken a puxou e lhe deu um beijo
nos lábios. Como lá no fundo ela queria beijá-lo há muito tempo, em vez de
empurrá-lo apenas o abraçou.
Separaram-se segundos depois. Um carro
rosa apareceu na esquina e foi na direção deles, que se separaram em tempo de
evitar o choque, pulando um para cada lado.
Enquanto Alyson tentava se equilibrar
novamente, o carro freou com uma rangida de pneus barulhenta. De seu interior
saiu uma garota ruiva, de cabelos curtos e olhos cor de mel. Vestia uma blusa
rosa pink, um short jeans, e de longe já transparecia a sua personalidade de
patricinha convicta.
-Alyson! Que bom te ver!
Alyson virou para Ken, que tinha ido
apoiá-la, e fez um sinal de “besta” para ele, que apenas concordou com um
risinho disfarçado.
-Eu assustei vocês? -Perguntou Sacha,
de frente para os dois.
-Essa foi uma pergunta simplesmente
retórica, não foi? -Questionou Alyson.
-Não!
-Desde quando você dirige?
-Desde que passei no exame, no mês
passado.
-O examinador devia ter algum
problema mental. -Comentou Alyson consigo mesma, rezando para que esse erro não
fosse causar acidentes mais graves. No mesmo
minuto estremeceu, dando um passo para trás. Talvez estivesse pirando de vez.
Acabara de ver um vulto negro atravessar a rua, bem na sua frente.
-Olha ela aí. -Falou Sacha, apontando
para uma moto que se aproximava, provavelmente terminando a frase que Alyson
não ouvira.
-Quê? -Perguntou Alyson, voltando a
si.
-Em que estava pensando? -Perguntou
Sacha.
-Em nada. Era só...
-Um devaneio. -Completou Kensuke.
-Pensei que eles tinham parado.
-Tem devaneios com freqüência? -Sacha
interrompeu.
-Não. Mas desde ontem estão
terríveis. -Respondeu a jovem, entre os dentes.
A moto que Sacha apontara parou ao
lado deles. Era negra, e nas suas laterais saiam riscos violetas. A motorista
desceu da moto e tirou o capacete, mostrando seus olhos castanhos claros e
cabelos da mesma cor, encaracolados, baixos e bonitos. Tinha um sorriso
cativante, um temperamento estável e uma inteligência que a classificava como
formidável.
-Só podia ser você. -Alyson abraçou a
amiga por alguns instantes.
-Afinal de contas o mundo não é tão
injusto assim, não é?
-Eu já tinha chegado a essa conclusão
há muito tempo.
-Que ótimo. -Replicou Cloe, abrindo
um sorriso. -Assim eu não vou precisar te convencer.
-Evitemos brigas desnecessárias.
-E insuportáveis também. -Alegou
Sacha para Ken, num sussurro.
Uma pontada no coração de Alyson
avisou que ela não deveria estar ali. Tentou ignorar, mas seu estômago se
revirou de tal forma que a fez pensar melhor. -Eu vou tomar um ar.
-Você está do lado de fora, tomar
mais ar que isso é impossível. -Sacha disse, em tom suspeito.
-É sério, preciso ir. -Algo murmurava
em seu ouvido, numa voz calma e luminosa: “Vá embora, enquanto ainda dá tempo”.
“Não posso”.
“Por quê?”.
“Não sei... estou com um mau
pressentimento”.
“Não é à toa. Se você não sair logo
daí, elas vão morrer”.
“Ninguém morre assim”.
“Pare de bancar a teimosa! Você sabe
que vai acontecer alguma coisa. Elas vão morrer”.
“Como evitar?”.
“Não pode evitar. Não se ficar ai.
Saia!”.
“Em que isso ajuda?”.
“Em nada. O destino diz que alguém
vai morrer hoje”.
“Então não posso ir”.
“Seja realista. É você que vai morrer
aqui. Se quiser poupar mais vidas, que é o que você pode fazer, suma!”
Alyson balançou a cabeça para afastar
esses pensamentos. Já tinha tomado sua decisão, mas era difícil dar um passo em
frente. Há muito tempo pedia para morrer. Há muito tempo julgava que o único
jeito para se livrar da dor era a morte. Mas não tinha coragem de tirar a
própria vida, portanto rezava para que sua hora chegasse rápido. Logo agora que
tudo ia bem, que tinha conseguido ganhar o coração de Ken, que suas amigas
tinham retornado, que a vida se tornara tão doce...
Mas ela era do tipo de garota que não
recua diante de nenhum perigo e, apesar do futuro incerto que a esperava, não
tinha medo nenhum da morte. -Eu... Tenho umas coisas para fazer. Já volto.
Ken a seguiu com o olhar desconfiado
e preocupado de quem sabe que o amor de sua vida vai aprontar alguma.
-Ela não parece estar normal.
-Comentou Sacha.
-Ela não pode estar. A Alyson que eu
conheço jamais nos deixaria aqui sem mais nem menos. -Lembrou Cloe, num tom
sério. -Ela não pode ter mudado tanto assim.
-Não mudou. -A voz de Ken saiu meio
tremida. A preocupação estava escrita no seu rosto, e um temor latente passou
pela sua mente. Ele voltou, o seu pior inimigo, um assassino masoquista e
cruel. E não estava sozinho, pois uma força oculta e fria podia ser sentida a
distância por alguém que tivesse feito o mesmo treinamento que ele. Não sabia o
porquê, mais essa força estava atrás de Alyson, e faria qualquer coisa para
destruí-la. Num instante, a resposta para o comportamento estranho da garota
apareceu: ela sabia! Não tinha certeza de como, mas ela sabia.
-Kensuke, você está bem?
-Como sabe o meu nome?
-Cinco anos de correspondência com
Alyson e você acha mesmo que ela não falou nada a seu respeito? -Disse Cloe,
sem emoção: -Mas se eu fosse você, ia procurar ela.
-Mas é claro que eu vou.
-Então eu acho bom andar logo, as
coisas não parecem nada boas.
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ZT
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Alyson andava lentamente pela rua.
Esperava a qualquer momento levar um tiro, ser atropelada ou que algum prédio
desabasse sobre ela. Mas não havia nada... Nada que pudesse preocupá-la.
-Isso só pode ser brincadeira. Não
pode ser real.
-Pode sim. Já que você veio de tanto
bom grado se oferecer para o meu arco, vou fazer o favor de te matar sem dor.
Ela não teve tempo nem de ver o rosto
do rapaz que lhe falava. No momento em que virava instintivamente, sentiu uma
dor dilacerante no coração e algo transpassando sua carne. Podia sentir o
sangue escorrer, e alguém a segurar, na hora em que ia cair no chão. E,
inesperadamente, tudo escureceu.
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