6 de ago. de 2015

Kit Black: Viajantes de Mundos


Primeiro capítulo: Uma mente bem diferente (parte II).

Alyson acordou na manhã seguinte com um pressentimento de que algo ia dar errado. E parecia estar certa, pois logo de manhã sua mãe lhe disse, com a voz mais natural do mundo: -Preciso ficar duas semanas fora.  Você vai ficar bem, não é?
A garota se engasgou com uma rosquinha e olhou a mãe com cara de quem não entendeu: -Como é que é?
-Trabalho, duas semanas fora... Entendeu?
-Mas não tem nem uma semana que a senhora voltou de São Paulo!
-É que tenho que acompanhar o senhor Reverton numa palestra em Brasília.
A moça nada disse. Sabia muito bem que a sua mãe precisava comparecer a essas reuniões mal previstas, e até gostava de se sentir livre de vez em quando. O caso era que Leah trabalhava como secretária, no escritório de uma das empresas mais prestigiadas do país. O seu patrão, Reverton Oflerrert, era constantemente chamado para compromissos e grandes eventos, e como Leah é a sua secretária mais competente (ele tem mais uma), Reverton sempre a levava consigo. Esse emprego é a maior causa da “rixa” entre Leah e o pai de Cloe, James Grey. Antes dele se mudar, quando os dois se viam freqüentemente (querendo ou não), ela dizia que o trabalho dele é pretexto de vagabundo. Ele é um arqueólogo famoso, e revida falando que é melhor ser “preguiçoso” do que viver dentro de um escritório fechado, servindo cafezinho pra meia dúzia de colegas. Melhor eu parar por aqui não é?
Alyson continuou a refletir sobre a viajem da mãe, dando a ela a oportunidade de terminar seu café com leite. Um tempo depois ela se levantou e perguntou, despreocupadamente: -Vai hoje?
-Sim vou hoje.
-Agora?
-Agora. Por quê?
-Por nada. –Mentiu a garota. Teve a ligeira impressão de que ia demorar muito tempo para elas se encontrarem depois dessa separação.
-Algum problema? Ou só quer saber para ter tempo de aprontar alguma?
-Claro que não!
         -Pensei. Mas é claro que você não aprontaria nada. Enfim... Preciso ir!
-É, a senhora não pode se atrasar.
-Quer alguma lembrança?
-De que? -Perguntou a garota, distraída.
-De Brasília.
-Nada.
-Está bem.
As duas se dirigiram pra fora de casa. Leah deu um beijo na filha e entrou em sua pick-up negra, acenando com a mão. Cinco minutos depois o carro sumia numa curva, deixando Alyson sozinha. A garota ficou alguns minutos na porta de casa olhando o ponto, e já ia entrar quando a voz de Ken rompeu o silêncio.
-Esqueceu de mim?
-Gostaria imensamente que você parasse de aparecer do nada.
-Tá, vou embora. -Alegou o garoto, virando-se e se preparando para ir mesmo.
-Não vai, não, eu só estava brincando.
-Sei. Mas eu tinha que entregar a carta, você se lembra?
-Lembro, lembro sim.
Ken entregou a carta, que Alyson abriu em segundos enquanto Sentava-se num banco atrás de si.
-Posso ver? -Perguntou ele, indo para trás do banco.
-Pode. -Respondeu Alyson, e voltou sua atenção para o papel:

Cara Alyson,
Desculpe-me pelo tempo que eu demorei a escrever novamente. As coisas andam meio estranhas ultimamente, e devo destacar que, se estou dizendo isso, é porque estão estranhas mesmo. Por exemplo, ontem eu achei ter visto um lobo roxo (juro por Deus!), caminhando no meu jardim. E Sacha me ligou hoje de manhã, falando que um pássaro cor de fogo tinha entrado no quarto dela de noite e a acordado.

Alyson parou por alguns instantes. Cloe tinha posto a data do dia em que escreveu a carta no envelope, com uma caneta roxa fosforescente (com certeza para chamar a atenção de Alyson para ela), e a data era de uma semana atrás. Justamente quando um gato preto havia pulado sobre ela e espalhado o trabalho de um fim de semana inteiro: O seu texto sobre mundos paralelos e porque poderiam existir. A professora de português tinha passado esse trabalho no último dia de aula, antes das férias do meio do ano. O desafio era escolher uma idéia extraordinária que todos dizem ser impossível, escrever sobre ela e apresentar um argumento pelo qual pudesse dizer ou provar que essa idéia possa ser real. Balançou a cabeça e recomeçou a ler.

Apesar de essas aparições estarem todas ligadas (eu acredito), não é por isso que eu estou escrevendo. Dessa vez tenho boas notícias, garanto. Uma delas é que vamos nos encontrar em breve: Consegui, com muito custo, convencer meu pai a voltar pra Petrópolis. A outra é que Naoco foi transferida para uma firma brasileira, e vai voltar também. A firma fica no Rio de Janeiro, portanto não vai ficar tão longe assim. Gostaria de falar mais, entretanto estou ocupada tomando conta daquela peste da Karolaine, você sabe, minha prima, e daqui a uma semana estarei aí. Não esqueça! Agente se vê em breve!
                                                                                       Sua amiga, Cloe.


Alyson demorou um pouco para processar os fatos. Quando se tocou, levantou do banco num pulo, acertando sem querer o queixo de Ken.
-Desculpe. Machucou?
-Não, imagina, você me dá quase um murro e não vai doer.
-Também, quem mandou ficar atrás de mim? Não se sente envergonhado de ficar lendo a correspondência dos outros não?
-Você deixou, esqueceu?
-Aa é, eu deixei! -Replicou ela, como quem diz “foi mal”.
-Eu esqueceria isso se você me desse um beijo.
-Você é muito convencido mesmo!
-Não sou. Mas ainda quero um beijo seu.
-Vai ficar querendo. -Retrucou Alyson, empurrando a testa dele com o dedo indicador.
-Espera, espera! Está dolorido.
-Pensei que eu tinha acertado o queixo.
-É né. Falando nisso está sangrando?
-O que? -Perguntou Alyson, já sem paciência.
-Meu queixo, minha boca... Acho que eu mordi a língua.
-Se tivesse mordido a língua, não estaria tagarelando! -Riu ela.
-Zomba bastante da desgraça dos outros.
     -Vai, me deixa ver se eu quebrei um dente seu. -Debochou a garota, levantando a cabeça de Ken e movendo delicadamente de um lado para o outro, tentando ver se ele sentia dor mesmo. -Só está inchado, vai ficar b...
Ela nem chegou a terminar a frase, pois antes que tivesse percebido o movimento, Ken a puxou e lhe deu um beijo nos lábios. Como lá no fundo ela queria beijá-lo há muito tempo, em vez de empurrá-lo apenas o abraçou.
        Separaram-se segundos depois. Um carro rosa apareceu na esquina e foi na direção deles, que se separaram em tempo de evitar o choque, pulando um para cada lado.
Enquanto Alyson tentava se equilibrar novamente, o carro freou com uma rangida de pneus barulhenta. De seu interior saiu uma garota ruiva, de cabelos curtos e olhos cor de mel. Vestia uma blusa rosa pink, um short jeans, e de longe já transparecia a sua personalidade de patricinha convicta.
-Alyson! Que bom te ver!
Alyson virou para Ken, que tinha ido apoiá-la, e fez um sinal de “besta” para ele, que apenas concordou com um risinho disfarçado.
-Eu assustei vocês? -Perguntou Sacha, de frente para os dois.
-Essa foi uma pergunta simplesmente retórica, não foi? -Questionou Alyson.
-Não!
-Desde quando você dirige?
-Desde que passei no exame, no mês passado.
-O examinador devia ter algum problema mental. -Comentou Alyson consigo mesma, rezando para que esse erro não fosse causar acidentes mais graves. No mesmo minuto estremeceu, dando um passo para trás. Talvez estivesse pirando de vez. Acabara de ver um vulto negro atravessar a rua, bem na sua frente.
-Olha ela aí. -Falou Sacha, apontando para uma moto que se aproximava, provavelmente terminando a frase que Alyson não ouvira.
-Quê? -Perguntou Alyson, voltando a si.
-Em que estava pensando? -Perguntou Sacha.
-Em nada. Era só...
-Um devaneio. -Completou Kensuke. -Pensei que eles tinham parado.
-Tem devaneios com freqüência? -Sacha interrompeu.
-Não. Mas desde ontem estão terríveis. -Respondeu a jovem, entre os dentes.
A moto que Sacha apontara parou ao lado deles. Era negra, e nas suas laterais saiam riscos violetas. A motorista desceu da moto e tirou o capacete, mostrando seus olhos castanhos claros e cabelos da mesma cor, encaracolados, baixos e bonitos. Tinha um sorriso cativante, um temperamento estável e uma inteligência que a classificava como formidável.
-Só podia ser você. -Alyson abraçou a amiga por alguns instantes.
-Afinal de contas o mundo não é tão injusto assim, não é?
-Eu já tinha chegado a essa conclusão há muito tempo.
-Que ótimo. -Replicou Cloe, abrindo um sorriso. -Assim eu não vou precisar te convencer.
-Evitemos brigas desnecessárias.
-E insuportáveis também. -Alegou Sacha para Ken, num sussurro.
Uma pontada no coração de Alyson avisou que ela não deveria estar ali. Tentou ignorar, mas seu estômago se revirou de tal forma que a fez pensar melhor. -Eu vou tomar um ar.
-Você está do lado de fora, tomar mais ar que isso é impossível. -Sacha disse, em tom suspeito.
-É sério, preciso ir. -Algo murmurava em seu ouvido, numa voz calma e luminosa: “Vá embora, enquanto ainda dá tempo”.
“Não posso”.
“Por quê?”.
“Não sei... estou com um mau pressentimento”.
“Não é à toa. Se você não sair logo daí, elas vão morrer”.
“Ninguém morre assim”.
“Pare de bancar a teimosa! Você sabe que vai acontecer alguma coisa. Elas vão morrer”.
“Como evitar?”.
“Não pode evitar. Não se ficar ai. Saia!”.
“Em que isso ajuda?”.
“Em nada. O destino diz que alguém vai morrer hoje”.
“Então não posso ir”.
“Seja realista. É você que vai morrer aqui. Se quiser poupar mais vidas, que é o que você pode fazer, suma!”
Alyson balançou a cabeça para afastar esses pensamentos. Já tinha tomado sua decisão, mas era difícil dar um passo em frente. Há muito tempo pedia para morrer. Há muito tempo julgava que o único jeito para se livrar da dor era a morte. Mas não tinha coragem de tirar a própria vida, portanto rezava para que sua hora chegasse rápido. Logo agora que tudo ia bem, que tinha conseguido ganhar o coração de Ken, que suas amigas tinham retornado, que a vida se tornara tão doce...
Mas ela era do tipo de garota que não recua diante de nenhum perigo e, apesar do futuro incerto que a esperava, não tinha medo nenhum da morte. -Eu... Tenho umas coisas para fazer. Já volto.
Ken a seguiu com o olhar desconfiado e preocupado de quem sabe que o amor de sua vida vai aprontar alguma.
-Ela não parece estar normal. -Comentou Sacha.
-Ela não pode estar. A Alyson que eu conheço jamais nos deixaria aqui sem mais nem menos. -Lembrou Cloe, num tom sério. -Ela não pode ter mudado tanto assim.
-Não mudou. -A voz de Ken saiu meio tremida. A preocupação estava escrita no seu rosto, e um temor latente passou pela sua mente. Ele voltou, o seu pior inimigo, um assassino masoquista e cruel. E não estava sozinho, pois uma força oculta e fria podia ser sentida a distância por alguém que tivesse feito o mesmo treinamento que ele. Não sabia o porquê, mais essa força estava atrás de Alyson, e faria qualquer coisa para destruí-la. Num instante, a resposta para o comportamento estranho da garota apareceu: ela sabia! Não tinha certeza de como, mas ela sabia.
-Kensuke, você está bem?
-Como sabe o meu nome?
-Cinco anos de correspondência com Alyson e você acha mesmo que ela não falou nada a seu respeito? -Disse Cloe, sem emoção: -Mas se eu fosse você, ia procurar ela.
-Mas é claro que eu vou.
-Então eu acho bom andar logo, as coisas não parecem nada boas.
                                                         T ZT ZT ZT
Alyson andava lentamente pela rua. Esperava a qualquer momento levar um tiro, ser atropelada ou que algum prédio desabasse sobre ela. Mas não havia nada... Nada que pudesse preocupá-la.
-Isso só pode ser brincadeira. Não pode ser real.
-Pode sim. Já que você veio de tanto bom grado se oferecer para o meu arco, vou fazer o favor de te matar sem dor.
Ela não teve tempo nem de ver o rosto do rapaz que lhe falava. No momento em que virava instintivamente, sentiu uma dor dilacerante no coração e algo transpassando sua carne. Podia sentir o sangue escorrer, e alguém a segurar, na hora em que ia cair no chão. E, inesperadamente, tudo escureceu.

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