Terceiro
capítulo: Remorso (parte VI).
Aaron
e Pandora entraram na grande sala. A primeira coisa que fizeram foi
cumprimentar Hiei e Mitaray. A segunda foi dizer em um tom alegre:
-Eles estão vindo. Vão chegar bem na hora!
Iris
abriu um sorriso breve. Com aqueles dois podia contar. Eram os mais
competentes ‘caçadores de informação’ que tinha. Aaron era o
engenheiro da equipe. Seus olhos azuis não deixavam passar nenhum
detalhe. Os cabelos negros e arrepiados lhe davam um ar mais jovem,
embora tivesse 30 anos. Guardava para si um sentimento muito forte
com relação à colega que agora estava ao seu lado.
Pandora
tinha tudo para ser uma simples mortal ou já estar morta. Seu corpo
era escultural, mas nem um pouco forte. Sua habilidade com armas de
“curto alcance” era mínima. Além de tudo, ela nascera cega.
Apesar
disso, ela era uma das melhores estrategistas da equipe. Seu cérebro
trabalhava absurdamente rápido. Seu corpo pequeno lhe permitia sair
de quase qualquer enrascada. E, embora não pudesse enxergar, ela
sentia com tanta intensidade que podia atirar num alvo a metros de
distância
com seu poderoso arco e flechas. Sua audição, tato e olfato
funcionavam assustadoramente bem, e com isso ela podia viver e fazer
qualquer coisa que alguém que enxergasse podia. Não sentia falta de
ver o céu, ou o inimigo, ou as crianças. Só havia uma única coisa
que a perturbava em não enxergar. Não poder ver o mar.
Crescera
ouvindo histórias sobre como era bonito, misterioso e perigoso.
Nascera em Farem mesmo, no litoral, o que explicava sua pele morena.
Era filha de um guerreiro habilidoso e marinheiro nato. Era um homem
rude, sempre com feições sombrias em sua face enrugada e coberta
por feias cicatrizes. Mas amava a filha. E sofreu muito quando ela
fora raptada e levada para longe dele. Adoeceu, e não viveu o
suficiente para ver a bela filha retornar, salva por um antigo
feiticeiro: Crós.
Ela
ingressou na equipe logo depois, convidada pelo próprio feiticeiro.
Crós não lhe ensinou truques, nem mágicas, nem tampouco curas.
Porém, foi o primeiro que acreditou nela. E, graças a ele, Pandora
achou o seu lugar, e desenvolveu todos os talentos que, até agora,
ninguém vira.
O
mar... Como queria poder vê-lo! Mas havia ainda mais uma coisa que
ela desejara ver... O rosto do homem que estava ao seu lado naquele
momento, explicando qual foi o esquema que usaram para rastrear Crós
e a garota no Mundo Real. O homem que a fazia rir com bastante
frequência,
que sempre estava lá quando ela mais precisava, que
inexplicavelmente se calava todas as vezes que ela falava a palavra
ROMANCE ou AMOR, embora soubesse que ele estava olhando para ela, de
uma maneira diferente... Especial.
Ela
sempre sabia quando Aaron a olhava daquele jeito. Queria poder ver
esse olhar. Quando o conheceu, a primeira coisa que perguntou foi
algo do tipo “pode me dizer como você é?” Ele sorriu e lhe
disse: “olhos azuis, cabelo negro arrepiado”.Foi até modesto.
Cores não significavam nada para ela, e ele deve ter realmente
percebido isso, pois se apressara em dizer: -Não que seja muito
importante.
Pandora
virou-se para ele e perguntou: -Você disse cabelos negros?
-Sim.
–Respondera ele. –Por quê?
-É
a única cor que posso distinguir. É tudo que eu posso ver. Pelo
menos vou ter algo para me agarrar... Algo para me servir de exemplo.
–Ela parou. Ele não dissera nada. Começara assim... Seus
silêncios abruptos e aconchegantes que ele fazia toda vez que se
falavam. –Quando perguntei como você é, quis dizer por dentro.
Os
olhos de Aaron brilharam, como incendiados por uma centelha de
compreensão. Nunca conhecera alguém que pudesse ser tão simples e
maravilhosa ao mesmo tempo. Sorriu mais uma vez e respondeu: -Chato
pra caramba, inteligente, mas nem tanto... Não penso muito antes de
falar, não sou tão corajoso como deveria...
-Esqueceu
de algumas coisas.
-O
quê?
-Sua
sinceridade... Modéstia... Honestidade... E, finalmente, sua
gentileza.
Desde
então, um passou a prestar atenção no outro mais detalhadamente.
E, apesar de nunca terem dito isso um para o outro, a cada dia que
passava começavam a se amar um pouco mais…
-E
então? Como conseguiram? –Interrogou Taylor.
-Primeiro
fizemos o computador canalizar a energia dos portais entre o nosso
mundo e o Real. Depois, juntamos a energia gerada pelo comunicador de
Crós. Então, usamos um pouco de eletricidade para criar uma ponte
entre o computador e o comunicador dele. Conseguimos entrar em
contato.
-Sério?
–Iris precisou agarrar Dayana pela gola da camiseta, antes que
começasse a pular de alegria. A sala já estava carregada de energia
suficiente para criar uma bomba nuclear.
-O
contato foi rápido, mas Salem disse que ele e os outros já estavam
chegando. -Pandora respondeu, se libertando de sua
semi-inconsciência. Ela era a única que só chamava Crós pelo
segundo nome. Sempre o chamava assim, pois foi o único nome que
entendeu quando ele salvou-a dos sequestradores.
Estava tão esgotada que não conseguia fazer perguntas, nem pedir
para repetir. Mesmo depois disso, ela insistiu em chamá-lo apenas de
Salem. E como ele gostava mais do segundo nome do que do primeiro,
aceitou isso de bom grado.
-Os
outros...? –Questionou Iris, sem entender.
-Sim,
os outros. É uma história meio complicada de se explicar, porque
Salem não teve a oportunidade de contar, sabe...
Todos
se entreolharam rapidamente.
-E,
pessoalmente, creio que estão do nosso lado. –Ela hesitou, e
sentiu algo apertar sua mão com força... Conhecia aquele toque. Seu
companheiro inseparável tinha ouvido a insegurança em sua voz e
afagava a sua mão sutilmente. Esquisito... Ele nunca a tocara assim
antes, sem que fosse realmente necessário. O coração disparou. Ela
conseguiu se manter controlada e passou a mão pelos cabelos loiros e
longos. Os olhos brancos procuravam o rosto que não podiam
contemplar, por mais que quisessem. Uma onda de vertigem apoderou-se
do seu corpo. O que raios estava acontecendo?
Dois
olhos azuis olhavam seu rosto, incrédulos. Vários pares de olhos
viraram-se para ela no mesmo instante. –Você está se sentindo
bem, Pandora? –Questionou Iris.
-Estou...
Eu estou. Só preciso descansar um pouco. -Seu corpo doía como se
milhares de flechas tivessem a transpassado. Ela largou a mão de
Aaron e se moveu para fora: -Boa noite.
Ela
saiu apalpando a parede do corredor, sentindo dor, angustia e medo...
Como se estivesse morrendo...
Os
colegas observaram a amiga sair da sala preocupados. A líder
virou-se para Aaron, perguntando: -O que você fez?
-Nada.
–Respondeu ele.
-Tem
certeza?
-Absoluta.
Ela parou de falar e eu segurei sua mão... Mais nada.
-Vá
ver como ela está, Aaron. Parecia muito pálida.
Ele
não esperou que ela repetisse... Deu meia volta e entrou no corredor
escuro. Seus passos ecoaram no silêncio.
-O
que ela tem? –Questionou Mitaray, incomodado. Nunca vira Pandora
agir assim antes.
-Eu
não sei. –Confessou Iris. –Começou a ficar assim há duas
semanas. Temo que esteja doente.
-Eu
examinei, e não achei absolutamente nada de anormal. –Alegou
Taylor, que era quase médica.
-Estranho...
-Bastante.
Mas vocês também precisam repousar. A prova amanhã será dura.
–Ela virou-se para eles, o rosto se fechando numa careta. –Tem um
quarto vago, no segundo andar. Venham, eu mostro para vocês...
Eles
subiram as escadas a sua frente e chegaram a um corredor mais
iluminado do que o do primeiro andar. Andando calmamente, Iris
conduziu-os até o seu final, onde ficava o quarto menor, desocupado
a longos 8 anos.
Aaron
disparou pelo corredor. Ela não poderia ter feito o percurso inteiro
tão rápido, a menos que...
Ele
retornou e entrou na primeira porta, a que dava para a sala do
computador. Acendeu as luzes. Pandora estava caída no chão,
parecendo morta. Correu até ela e se ajoelhou ao seu lado. Já ia
gritar por ajuda quando foi interrompido.
-Aaron...
Não. Não grite, por favor. Estou escutando gritos demais
ultimamente. –Ela murmurou, abrindo os olhos.
-Pandora...
–Ele suspirou, aliviado. Um quê de raiva encobriu sua voz quando
voltou a falar. –Mas que raios, você quer me matar do coração?
Ela
puxou a mão dele enquanto tentava se levantar. –Por quê está tão
zangado? –Murmurou, se apoiando na parede com dificuldade.
-Não
estou zangado. –Mentiu ele.
-Está
sim. Posso ouvir a raiva na sua voz. –Ela tentou dar um passo à
frente e se desequilibrou. Ele a tomou nos braços, antes que caísse.
Tenso, tentou olhar o rosto dela. Estava realmente muito pálida. Mas
isso não a impediu de repetir a pergunta: -Por quê está tão
zangado?
-Pensei
que estivesse morta.
-Também
pensei.
-O
quê?
-Ando
sentindo coisas estranhas... Ouvindo gritos. Isso não pára nunca.
Acho que estou ficando louca.
-Deve
estar doente... Mas louca, eu duvido.
-Acho
que vou morrer... Em breve.
Ele
sentiu uma pontada forte no coração. E se fosse verdade, o que
faria? Tentou não pensar muito nisso. –Deixe de dizer sandices.
Você vai ficar bem.
-Você
não entende... Eu sinto que estou morrendo aos poucos. Sinto flechas
invisíveis me perfurando, e a dor... Você não tem ideia do quanto
dói.
Aaron
arfou baixo. De repente, estava soluçando, lágrimas salgadas
escorrendo pela sua face. Ele podia sentir. Não queria acreditar,
mas sabia que estava próximo... Ainda abraçado com Pandora, sentiu
ela se remexer em seus braços e encontrou os olhos dela. Vazios,
sim, é claro, mas toda vez que via aqueles olhos sentia como se ela
estivesse mesmo vendo-o.
-Pare
de chorar por minha causa. Não gosto de te “ver” assim.
-Você
não pode ver.
-Posso
sentir. Pare de chorar. Por mim...
-Não
posso.
-Por
quê?
-Você
não entenderia.
-Aaron...
Ele
encostou a testa na dela, se controlando o mais que podia. Chega de
fingir. Chega de esconder. Engoliu em seco, repetindo para si mesmo a
frase que pensara em dizer a mais de 8 anos: -Eu te amo.
O
silêncio o cercou. Olhou novamente para baixo, para a frágil garota
em seus braços. Ela continuava com os olhos direcionados para o seu
rosto. Mas aqueles olhos, geralmente tão doces, agora estavam
tristes. Mais um minuto e Pandora também chorava. –Eu também te
amo. Não quero deixar você...
Ele
fechou os olhos e abaixou a cabeça, procurando os lábios dela.
Sentiu sua leveza enquanto ela retribuía o beijo, com urgência. Se
soubesse que tinham tão pouco tempo, teria aberto o jogo antes.
Aaron a abraçou mais forte, o rosto molhado por lágrimas teimosas,
que se recusavam a ficar em seus olhos amedrontados.
Alguém
iria arrancar o tempo deles. Arrancaria aquele momento perfeito, ao
qual tinham esperado tanto. Mas ele ia lutar! Ia vender caro a sua
pele. Seja lá o que fosse que estivesse querendo matar Pandora,
teria que lhe enfrentar primeiro.
Mas
o que ninguém sabia era que Pandora podia adivinhar o futuro. E que
ela não tinha visões, mais sim sentia tudo o que estava por vir.
Ouvia tudo... E, a “visão” que tinha, era realmente de sua
morte. E que ela se realizaria mais cedo do que poderia imaginar... E
que Aaron não estaria lá para chorar por ela, pois também teria
partido…
Alyson
olhou para Crós. Ele balançava o comunicador negro com energia:
-Lata velha, porcaria, monte de sucata! Vamos, volte a funcionar!
Balançou
a cabeça, como quem diz “eu não estou vendo isso”. Seus olhos
buscaram Ken. O rapaz mantinha-se concentrado em pilotar, mas um
breve sorriso de escárnio estava desenhado em sua face. Cloe
manifestou prontamente a sua opinião, que também passara pela
cabeça dele: -Bem vindo à nossa piada particular do Mundo Real...
Os aparelhos sem fio estão sempre fora de área.
Crós
pensara em atirar o aparelho longe quando lembrou o que Taylor
provavelmente diria: “Acha que o dinheiro que vem do Palácio de
Granito para financiar nossas ações nasce em árvores?”. Respirou
fundo e retrucou: -Eu definitivamente odeio esse lugar.
-Tá,
não precisa exagerar. Não é tão ruim assim. –Alegou Alyson,
remexendo na mochila que trouxera, procurando o aparelho de MP3 que
tinha jogado lá dentro no dia anterior.
-Deixe
de ser hipócrita, você não gosta desse mundo mais que eu.
–Protestou ele.
Ela
parou para pensar um instante e respondeu: -Verdade. Eu
definitivamente detesto toda a corrupção, violência e falta de
amor-próprio que enche este mundo hipócrita. Mas eu nunca conheci
um lugar melhor... Antes um mundo perdido e caindo aos pedaços do
que nada.
-Não
culpe o mundo em si. Culpe os próprios humanos que fizeram isto com
ele. –Alegou o feiticeiro, solenemente.
-Pensei
que você estivesse fazendo exatamente isso...
-Pensou
errado.
Ela
desistiu de discutir e deu de ombros. A voz suave de Ken chegou nos
seus ouvidos.
-Se
serve de consolo para vocês dois, também abomino esse mundo criado
por seres humanos hipócritas.
-Tá
aí uma coisa que eu não esperava ouvir. –Falou Cloe.
-Se
tivesse tido uma vida igual a minha, aposto que concordaria comigo.
-Não
precisa ser grosso... Eu entendo o seu lado. O que eu disse sobre
falar antes de pensar?
-Desculpe.
-Pessoal,
vamos tentar acalmar os ânimos, ok? –Pediu Alyson, completando
animadamente: –Achei!
-O
que? –quis saber Ken.
-O
aparelho de MP3 que estou procurando há uma hora. –Ela disse
calmamente, enquanto sentava novamente e colocava os fones de ouvido.
-Não
vai dormir?
-Estou
muito agitada para isso. Você não?
-É,
bastante. –Ken piscou os olhos, cansado.
-Por
que não diz logo “não”?
-Porque
não quero parecer indiferente e muito menos ferir seus sentimentos.
-Esse
cuidado todo está começando a me assustar... -Ela comentou, fitando
as costas dele, enquanto trocava de lugar com Crós, assim como na
noite anterior. Ele recostou-se na cadeira do co-piloto e virou a
cabeça para olhá-la.
-Nunca
mais vou discutir com você.
-Quando
o fizer, saberei que voltou ao seu normal.
Ele
riu levemente, mas não respondeu.
~Kit Black
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