Terceiro
capítulo: Remorso (parte III).
-Uma
palavra com dez letras, que começa com I, e a sétima letra também
é I.
-Impossível.
-Valeu,
Mitaray! -Agradeceu Hiei, completando a palavra cruzada que estava
preenchendo e mudando de página.
-Eu
estava falando de você.
-Não
sou tão insuportável assim. -Se defendeu o rapaz, lançando um
sorriso zombeteiro ao amigo.
-É
porque nunca experimentou ficar sozinho consigo mesmo. -Rebateu
calmamente Mitaray, encostando a cabeça na janela e olhando para
fora. Uma floresta desfilava em alta velocidade pelos seus olhos.
Os
dois estavam num trem expresso, indo direto de Vadolfer para Farem,
onde se localizava a Sede Black. Estavam em uma cabine vazia, Um em
cada banco... O resultado era que ficavam se encarando o começo da
viagem, até Mitaray abrir um livro (intitulado “Dragom, o Reino
dos Dragões”), e Hiei puxar da bolsa uma revistinha estilo
Coquetel.
Eram
quatro horas da tarde, e uma nuvem densa e escura cobriu o sol. Um
vento gelado começou a soprar, fazendo com que Mitaray fechasse
completamente sua janela. Hiei fez o mesmo. Um trovão ribombou ao
longe. Mas nuvens se juntaram, tapando completamente o sol. Raios
apareciam ao longe, e logo uma chuva forte desabou sobre quase toda
Diamante. Mitaray cravou os olhos no amigo, que abaixou imediatamente
a revista. Gritos estrondosos e assustadores ecoaram pela tempestade.
-Silfos
da tempestade. -Murmurou Mitaray.
-Estranho.
O céu estava azul, sem uma nuvem... E, do nada, uma tempestade
sinistra cai. -Comentou Hiei.
-Isso
não é bom. Tempestades repentinas são sinais de mau agouro. Ainda
mais com essa quantidade de silfos. Pode sentir? Na alma da
tempestade há dor, há sofrimento... Perdição.
-Seres
está chorando. Por que será?
-Não
sei dizer. Mas para uma Deusa chorar, o motivo tem que ser muito
sério. -Disse Mitaray, e outro grito lacerante veio da tempestade,
junto com outro trovão. A deusa da água, Seres, chorava e lamentava
e ninguém, alem dos outros deuses, imaginava o porquê.
-Uma
expressão que começa com N. -Pediu Hiei, para amenizar o clima,
abrindo outro sorriso... Desta vez amargo. Uma vez que Seres chorava,
Diamond inteira sentia a sua dor.
-Não
enche! -Respondeu Mitaray, reabrindo o livro.
-Ai!
Alyson
deu um berro, e se contorceu mais uma vez.
-Você
pode ficar quietinha por um minuto! -Pediu Crós, enquanto abaixava a
cabeça da garota pela décima vez seguida.
Eles
estavam no hidroavião, tentando dar um jeito no machucado que se
abria na cabeça da garota. Sacha e Cloe tinham saído para comprar
umas lembranças da cidade. Ken estava sentado confortavelmente no
banco, observando as tentativas de cura do feiticeiro. Crós havia
mandado Alyson sentar num banco e abaixar a cabeça, E tinha entrado
no vão entre as costas desse banco e o detrás. Tinha pegado no
bolso uma erva que disse se chamar Alancia,
e um tempo depois colocou por cima do ferimento. E começou a dizer
um feitiço, algo como:
Osso
quebrado, ordeno que se junte;
Veia
torcida, ordeno que se desenrole;
Ferida
aberta, ordeno que se feche;
Dor
insuportável, ordeno que acabe;
Corpo
cansado, ordeno que se cure.
Infelizmente,
toda vez que ele chegava à segunda frase a jovem sentia dor e se
mexia, quebrando a concentração do mago e fazendo-o repetir tudo
outra vez.
-Seu
insensível, isso dói, ta? Já viu o tamanho do rombo que aquele
desgraçado me fez?
-Estou
tentando te ajudar.
-Poderia
deixar eu me curar sozinha. Tenho uma recuperação física muito
rápida e defesas muito fortes...
-Uma
ajuda a mais não vai fazer mal algum. E acha que essa defesa pessoal
é muito boa? Conheci gente igual a você que pegou uma infecção
séria por causa de avantesmas e sabe onde estão? Sete palmos abaixo
da terra. Não quer morrer de novo, quer?
-Não,
obrigada, uma flechada no coração já é suficiente. -Replicou
Alyson, parando de se mover por alguns segundos. Logo outro grito de
dor e nova interrupção forçaram Crós a parar. Uma onda de
indignação passou pelo seu rosto descoberto.
-Pode
parar de se mexer? -questionou ele, sem a mínima paciência.
-Não
posso evitar. São atos-reflexos. -Desculpou-se ela.
-Eu
adoraria te ajudar. Mesmo, mas se continuar se contorcendo eu nunca
vou chegar ao final do feitiço. Capite?
Tente relaxar!
Ela
fechou os olhos e abaixou a cabeça outra vez. De repente, aquela voz
suave entrou no seu pensamento, novamente. E começou a falar:
“Já
se resolveu?”.
“Estou
confusa. Ele mentiu para mim. Pode me entender?”.
“Humanos
mentem”.
“Mas
ele errou. E feio, dessa vez”.
“Humanos
erram”.
“Quero
perdoar, mas ao mesmo tempo não quero. Ele parece perfeito para mim
às vezes, e em outras parece não ter nada a ver.”
“Humanos
são imperfeitos”.
“Sei
disso”.
“Mas
esquece”.
“Você
tem razão. Posso te chamar de você?”.
“Pode
me chamar do que quiser, por enquanto”.
“O
que eu devo fazer? Estou tão confusa”.
“O
que achar certo”.
“Não
sei”.
“Pense”.
“Acho
que ele é o certo”.
“Você
está no caminho correto... O caminho do seu coração”.
“E
se ele não for o certo?”.
“Saberá
o que fazer. Mas quando os humanos aprendem a olhar para dentro de si
mesmos, quando ouvem seu coração, aprendem a seguir seu caminho, a
evoluir, a ter o poder de mudar seu destino. Enquanto seguir esse
caminho, nada, nem ninguém, poderá o impedir”.
“Um
dia vou chegar a esse nível?”.
“Um
dia”.
“Estou
preocupada. Não sei porque. Talvez seja o fato de eu ter que deter
uma imortal. Ela é uma assassina. Tem sangue frio, poder, vida
eterna. Tem muitas coisas que eu não tenho. Como posso vencer se sou
tão inferior?”.
“Comece
se perguntando o que você tem que ela não pode ter. Mas não é
isso o que você procura”.
“Como
assim?”.
“Não
é com isso que você está preocupada”.
“Eu
não sei. Ainda a pouco eu pensei ter ouvido um barulho de chuva, de
berros horríveis, por dentro de uma tempestade. E uma tristeza muito
grande tomou conta de mim”.
“Crós
também pode sentir. Fique do lado dele. Ele entende o porquê, pois
nasceu em Diamond, e Diamond é parte dele. Quando Diamond ou seus
Deuses sofrem, os fiéis a eles podem sentir”.
“O
que está havendo?”.
“A
Deusa da água está chorando”.
A
voz calou-se, e Alyson entendeu que ela tinha se recolhido às
profundezas de sua mente. Um último conselho passou como um lampejo
em sua mente.
“Pode
abrir os olhos. O feiticeiro terminou a magia agora”.
Ela
reabriu os olhos, e sentiu como se tivesse dormido uma noite inteira.
Sua cabeça não doía mais. Não havia mais sangue... Não havia
mais nada. Ela passou a mão delicadamente pela cabeça, e Crós
disse o que ela se recusava a acreditar: -Não há mais ferimento.
Ele sumiu... Completamente.
Ken
tentava esconder a surpresa, mas não era muito eficiente nisso. A
garota virou-se imediatamente, abrindo um sorriso radiante e deu um
beijo na testa do mago. Esse ficou meio pasmo por alguns momentos,
depois deixando um sorriso cintilar pelo seu rosto. Passou sua mão
pelos cabelos dela, bagunçando-os mais ainda.
-Você
vai me ensinar, não é?
-O
quê?
-Esse
feitiço. Por favor. -Pediu Alyson, piscando os olhos com carinha de
anjo.
-É
muito complicado...
-Eu
me esforço. Crós, por favor...
Ele
pareceu pensar por um minuto. -Bom, levando em consideração que
você é atrapalhada e que vive se machucando... Está bem.
-Sério?
-Perguntaram Alyson e Ken juntos. Ela com admiração, ele chocado.
-Sério.
E caso consiga utilizá-lo com perfeição, eu ensino os outros. Você
vai ser, como eu posso dizer? Minha aprendiz.
-Jura?
-Ela questionou, enquanto Ken sussurrava para si mesmo: -Socorro.
-Juro.
Palavra de feiticeiro. Afinal, Iris sempre me disse para procurar uma
cobaia para eu ensinar.
-O
que você quer dizer com cobaia? -Gaguejou a jovem.
-Foi
uma aposta que os outros integrantes da Equipe fizeram em mim.
Aparentemente era o grupo que achava que o meu primeiro aprendiz ia
se transformar em uma pessoa poderosa e importante contra...
-Contra?
-Perguntou, já começando a mudar de ideia.
-Os
que achavam que o meu primeiro aprendiz ia acabar em pedaços,
tentando produzir uma das minhas complicadas formulas.
-Em
que lado a Iris estava?
-Do
meu. O lado Super-herói. E junto com ela estava o Aaron, a Dayana e
o Senhor do Palácio de Granito. À minha esquerda... -E ele deu um
sorriso besta. -... Ou do lado do “defunto”, estavam a Taylor, a
Pandora e o Dave. Na realidade, a culpa disso tudo é do Dave.
-Senhor
do Palácio de Granito? -Perguntou Ken, interessado.
Crós
olhou para cima como se aquilo fosse algo que não quisesse lembrar e
retrucou baixo, virando-se e saindo do hidroavião: -Isso foi há
muito tempo.
Alyson
o acompanhou pelo vidro dianteiro do avião e suspirou profundamente,
enquanto Ken se aproximava dela. Foi recebido com um tapa na cabeça.
-Hei...
Por que fez isso? -Ele resmungou, esfregando o local atingido.
-Você
tinha que perguntar? -Acusou ela, cruzando os braços. -Não está
vendo que eu estava tentando animar ele?
-Parecia
estar tentando convencer. -Disse o rapaz. -Animar por quê?
-Você
não acreditaria em mim. -Ela alegou, sentando num dos bancos. Ele se
sentou ao seu lado.
-Tente
explicar... E eu prometo que tento entender.
-Ta.
Mas é complicado. E estranho.
-Por
favor, eu tive um mestre que podia viajar pelos três mundos e você
vem me dizer que algo é estranho demais?
-Tem
uma voz na minha cabeça, Ken. Eu estava conversando com ela enquanto
Crós fazia o feitiço... Por isso que eu “sosseguei”.
-Sério?
Parecia que você tinha apagado.
-Ele
pediu para eu relaxar. Essa coisa... Seja lá o que for, está
tentando me ajudar. E ela disse que Crós estava triste. Estava
sofrendo por causa do que estava acontecendo em Diamond.
-O
que está havendo?
-Eu
fiz a mesma pergunta.
-E
o que ela respondeu?
-Que
a Deusa da água está chorando.
-Meu
mestre disse algo sobre isso uma vez.
-O
que ele disse?
-Que
para a Deusa da água chorar precisa de um motivo muito forte. E que
quando ela chora, o que é raro, mesmo o dia mais claro é
imediatamente coberto por nuvens negras, e uma tempestade arrepiante
se forma. E que criaturas invisíveis para pessoas com olhos comuns
gritam e choram, junto com a tempestade, espalhando a dor por onde
ela passa. -Contou. Ela o fitou demoradamente, aparentemente
amedrontada.
-Não
foi apenas sobre isso que ela falou. Digo “ela” não porque é
uma voz, mas porque tem um tom feminino. E eu tenho certeza que ela é
uma mulher. -E dizendo isso ela fez o sinal de aspas com os dedos. E
completou: -Preciso falar com você.
-Ela
mandou?
-Não
exatamente. Ela disse para eu seguir meu coração. E não sei ao
certo o que ele está dizendo agora, mas... Preciso falar com você.
-Vai
ficar com seu amiguinho romântico francês? -Perguntou ele, com um
sorriso triste.
-Nem
pensar! O que fez você pensar nisso?
-Ele
está dando em cima de você desde que te percebeu. E por um breve
momento achei ter visto algo como uma... Cumplicidade.
-Achou
errado.
-Em
todo o caso, preciso admitir...
-Que
você não gosta de mim? Não precisa, já me jogou isso na cara
horas... -Ela foi interrompida por um beijo rápido.
-Eu
menti. Duas vezes.
-Me...
Mentiu, é?
-Quando
disse que não confiava em você... Eu estava fora de mim, não sabia
o que eu estava dizendo. -Ele segurou as mãos de Alyson nas suas e
continuou. -Confio a você até a minha vida, se for preciso. Mas
tenho medo... De acordar um dia e descobrir que você desapareceu, de
ver você morrendo outra vez e não poder fazer nada, de fazer você
sofrer sem necessidade... Eu tenho medo de muitas coisas não é? Mas
é porque eu te amo. Tenho pavor de perder você.
-Demonstra
muito bem. -Alegou, com um sorrisinho torto. -Que engraçado...
-O
que é engraçado? -Retrucou Ken.
-Também
te amo.
-Posso
perguntar qual é a graça nisso?
Ela
deu uma risadinha: -É difícil de explicar. Às vezes, quando
esperamos muito por algo... Quando queremos muito algo, parece
impossível de se conseguir. Mas quando conseguimos... Sei lá,
parece que é brincadeira. Frustração.
-Você
está esperando algo que não vai vir. Porque eu juro pela minha alma
que tudo o que eu acabei de dizer é verdade. A mais pura verdade.
-Sei
que é. Confio em você. -Ela o abraçou docemente. O rapaz corou,
surpreso. Ela era previsível... Pelo menos na maioria das vezes.
-Posso
te fazer uma pergunta?
-Qual?
Ken
abriu um sorriso de escárnio (o que significava que era alguma
bobagem), e perguntou: -Sou seu namorado agora?
-Bobo.
~Kit Black
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