Quarto
capítulo: O Caminho da Ilusão (parte V).
Meio
dia. Sol a pino. Mas quem estava dentro do Caminho da Ilusão não
podia ver o astro-rei ou sentir seu calor. Não, quem estava lá
tinha que lidar com o frio e a escuridão, como se estivessem num
abismo e muito longe de conseguirem sair. Kensuke e as garotas
estavam nessa situação. E, aparentemente, estavam mais uma vez
perdidos…
-Acho
que deveríamos mudar de líder. –Alegou Kira.
Ken
não respondeu, apenas suspirou fundo. Ela tinha toda a razão…
Pensava em responder quando um som de coisa quebrando o impediu.
-Lá
vamos nós de novo… -Cloe resmungou, puxando o chicote. Eles já
haviam queimado mais árvores monstro que poderiam contar.
Mas
não era uma árvore dessa vez… Era algo muito pior…
O
barulho continuou. Agora se misturava ruídos como chiados. O solo
começou a tremer.
-Terremoto?
–Cloe disse baixo, dando passos para trás…
-Aqui?
–Questionou Sacha.
-Qual
o problema, ninguém disse que aqui não tinham placas tectônicas…
-Não
fale difícil, Cloe. –Resmungou a ruiva. –Sabe que não sei nada
de tecnologia…
-É
tectônicas, sua anta. E, seja lá o que esse tremor for, não estou
gostando… -Retrucou Kira.
Agora
a camada de folhas mortas e terra começava a se levantar, e de seu
interior surgiram coisas. Coisas que só poderiam ter saído de um
pesadelo. Seres que os observavam com suas órbitas vazias, e que
carregavam grandes cimitarras e espadas com suas mãos descarnadas.
Eram esqueletos.
Esqueletos
vivos.
-Não
gostei da cara deles… -Gemeu Sacha.
-Na
realidade, “cara” é uma coisa que eles deixaram de ter faz
tempo. –Cloe argumentou. –O que me lembra do quanto essa situação
é improvável…
-Mas
está acontecendo. E eles estão querendo nos matar, então que tal
levarmos isso a sério por alguns instantes? –A loira puxou mais
uma vez a espada e, numa fração de segundos, partiu um esqueleto ao
meio. –Vou fazer com que voltem para o lugar de onde não deveriam
ter saído…
-E
quem você pensa que é, garota estúpida, pra achar que isto é
possível?
A
voz pegou-os de surpresa. Era de um tom agudo, como um tilintar de
ossos… Uma figura se destacou do grupo de esqueletos. Em sua cabeça
havia restos de um capacete empenado, como se tivesse vindo da
Grécia. Uma armadura semidestruída cobria sua caixa torácica, mas
o que mais chamava a atenção era uma joia rubra como o sangue, que
estava presa em seu pescoço, mas a despeito da armadura destruída e
da falta de carne ou tecido, se alojava entre as suas costelas.
Pessoas
sensatas calariam a boca imediatamente e correriam até estar tão
longe que os esqueletos não poderiam alcançá-las. Mas Kira não
era uma pessoa sensata. Muito pelo contrário.
-Eu
sou Kira Himura. E digo que vou arrancar a sua cabeça e usar seu
capacete de espanador de pó.
O
ser riu ameaçadoramente. –Tente então, mortal infeliz.
A
jovem girou a espada nas mãos e atacou, fazendo uma sucessão de
golpes e estocadas à esquerda e direita sem, contudo, conseguir
acertá-lo.
-Não
é tão fácil quanto parece, não é, menina? –Ele desceu a
cimitarra, mas Kira abaixou e golpeou seu pescoço com a espada. A
cabeça foi ao chão, rolando, de maneira nauseante.
O
irmão soergueu levemente as sobrancelhas. –Mas já?
-Essa
foi rápida… -Sacha comentou, se escondendo atrás de Ken,
imaginando que o resto de esqueletos ia matá-los por terem matado o
líder deles (embora ele já estivesse morto). Não foi isso que
aconteceu. O que ocorreu foi que um coro de risos diabólicos
levantou-se do pequeno grupo de monstros, chegando a proporções
assombrosas.
“Isso
não me parece muito bom…” foi o pensamento que passou pela
cabeça de Cloe. “Isso não é nada, nada bom”.
-Estão
rindo do que, seus idiotas? Acabei de decepar a cabeça do líder de
vocês. Vocês serão os próximos.
A
zombaria continuou, interminável. Kira já começara a perder o
resto de paciência que ainda tinha. Ninguém tirava com a cara dela
e ficava impune! Empunhou a espada, se preparando para desfiá-los um
por um, quando aconteceu. E aconteceu realmente rápido, porque a
deixou sem reação. O esqueleto levantou-se como se nada tivesse
acontecido, agarrou o próprio crânio que jazia ao seu lado e
encaixou-o em seu pescoço novamente, com um “crack”
desagradável.
-Eu
sou Gaia, o capitão dos esqueletos vivos. Nós já estamos mortos há
muito tempo. Como espera matar quem já está morto, Kira Himura?
A
cara de surpresa que estampava o rosto da jovem se dissolveu,
deixando em seu lugar um sorriso de escárnio: -Tudo tem seu ponto
fraco. Até mesmo vocês, montes de ossos…
-Vou
descarná-la pela sua ousadia.
-Vai
pro inferno.
-Eu
vim de um lugar muito pior. –O monstro alegou, levantando a
cimitarra que usava acima do crânio. –Esqueletos… Ataquem!
-Agora
nós vamos morrer… -Ken comentou, enquanto desferia um golpe contra
um dos seres, partindo-o em dois (o que, no final das contas, não
faria diferença alguma, pois ele se regeneraria novamente em
segundos).
Estava
tudo perdido. Eles não iam sobreviver àquilo. Era impossível,
mesmo que a confiança de Kira fosse inabalável, mesmo que a
inteligência de Cloe fosse admirável, mesmo que Ken fosse um
espadachim exímio, mesmo que Sacha tivesse algum talento além de
uma beleza absurda. Eles não conseguiriam. Chamariam Iris? Quem se
lembraria disso numa hora daquelas?
E,
nesse momento, uma flecha familiar sibilou, deixando sem cabeça mais
um esqueleto, bem a tempo de evitar que Sacha perdesse a dela
própria.
Antes
que pudessem dar pelo fato, uma foice varreu mais metade dos
esqueletos transformando-os em pó. Sim, em pó! Uma sombra desceu de
uma das árvores, portando um bastão negro, com uma caveira em sua
ponta, e apenas usando isso transformou mais alguns seres em poeira.
A primeira reação de Kira, que se defendia de um ataque antes do
inimigo ser destruído, foi murmurar algo como “Como?”. Virou-se
imediatamente. O dono da foice estava ao seu lado, segurando a arma
com as duas mãos, fazendo questão de ficar entre ela e o que
restara do grupo de esqueletos, reunidos em torno do próprio Gaia. O
capitão dos esqueletos vivos rosnou de desagrado, resmungando, entre
os dentes. –Caçadores… Vocês. Não esperava que fosse
encontrá-los aqui.
-Digo
o mesmo, Gaia. Vocês estão longe de casa. Deveriam voltar para onde
a sua mestra está.
-Foi
ela que nos mandou aqui, cachorrinho da Morte. Mas, aparentemente,
temos que nos retirar mais cedo do que deveríamos.
-Vai
ser melhor para os seus capangas. Metade deles já sumiu, quer perder
a outra?
-Sempre
restará a mim no final. Sabe bem disso.
-Você
sozinho não é nada.
-Sou
o suficiente, com um punhado de ossos em mãos.
Mitaray
estreitos os olhos, da cor da tempestade, e apontou a foice em
direção a ele. –Vá. Agora. Ou farei seu pequeno exército do
qual tanto se orgulha virar pó mais uma vez. Aposto que sua mestra
não vai gostar nada disso.
-É,
esqueleto, volte para o seu deserto. E aproveita para comer algo,
você está muito… Magro. –A voz de Hiei chegou de não muito
longe. Estava bem ao lado de Ken, ajudando-o a se levantar.
-Um
dia, Caçadores… Um dia destruirei sua Cidade, seu maldito mestre
e, por último, vocês… Guardem essas palavras. –Gaia jurou, em
tom agressivo.
Seus
esqueletos que restaram começaram a afundar de volta a terra de onde
haviam saído, um por um, até ficar apenas o capitão. Ele riu uma
última vez e, enquanto sumia em meio a terra, alegou: -Mas, não
importa realmente. Nós destruímos quase todos os outros candidatos
a entrar na Equipe. E, além do mais… Acho que não haverá mais
uma equipe quando saírem daqui…
Mitaray
não gostara daquela afirmação. Entretanto, quando se preparava
para impedi-lo, o capitão já havia sumido.
“Não
haverá mais uma equipe quando saírem daqui”
A
frase ficou ecoando em sua cabeça, incapaz de se desligar de seus
neurônios.
-Temos
que ir. –Disse por fim.
-Mas
e o teste? –Questionou Kira.
-Não
haverá mais teste. Não haverá mais nada. Acho que…
-Acha
quê?
-Acho
que Haradja armou pra nós. E caímos direitinho. Alberich?
-Sim?
–O elfo respondeu. Aparecera tão de repente que tirara o folego da
maioria do grupinho reunido.
-Quantos
sobreviventes?
-No
Caminho?
-É.
O
elfo fechou os olhos e respirou fundo.
-O
que ele está fazendo? –Cochichou Sacha para Hiei.
-Alberich
é um elfo. Ele pode se comunicar com as árvores e o meio. Mas nós
estamos num lugar não muito agradável, então acho que ele vai
demorar mais tempo para conseguir a resposta. Essas árvores são um
tanto quanto… antissociais.
O
elfo abriu lentamente os olhos. Sua expressão era indecifrável, mas
havia um quê de tristeza em seus olhos.
-Somos
os únicos. Sem contar aqueles que foram eliminados e resgatados por
Iris.
Foi
difícil decifrar a expressão que passou pelo rosto de Mitaray, mas,
com certeza, não era a de serenidade usual. Ele crispou os lábios
e, de súbito, virou-se para os Slaiers. –Vamos em frente. Espero
que a saída esteja próxima.
-Mas
você não disse… -Começou Sacha.
-Sei
o que eu disse. –O rapaz cortou-a imediatamente e a pegou por um
dos braços, puxando-a, sem machucá-la. -Vamos continuar. Venham.
O
grupo seguiu-o sem mais reclamações. Kira, que se mantinha ao lado
de Mitaray, finalmente resolveu perguntar: -O que eles eram?
-Esqueletos
Vivos.
-Isso
eu reparei.
Ele
estalou os ombros: -Gaia fora um importante general grego a muito
tempo atrás. Quando Helena foi raptada por Páris, no que se
sucederia a Guerra de Troia, ele foi chamado para se juntar ao
exército que vinha de Esparta, comandado pelo esposo daquela que
tinha sido arrebatada.
-Menelau.
-Exato.
No entanto, ele foi assassinado antes de se juntar ao exército,
perdendo irremediavelmente a honra de participar da maior batalha da
história grega. Por não ter tido um devido funeral, já que seu
corpo não tinha sido encontrado, ele foi condenado a vagar pela
margem do Rio Estige, por cem anos, até poder atravessar para o seu
julgamento.
-Eu
ouvi falar das lendas gregas, mas nunca imaginei que fossem reais.
–Alegou Cloe.
-Geralmente,
as pessoas do Mundo Real preferem acreditar em ilusões e ignorar a
realidade. Cada um tem a sua verdade. –Alberich disse, enquanto
acertava com uma flecha uma árvore qualquer. Vendo a curiosidade nos
rostos dos outros, explicou: -Para não nos perdermos. Esse lugar é
confuso até pra mim.
Hiei
olhou para o elfo e questionou: -Isso significa que estou ganhando a
aposta?
-Ainda
estamos vivos e não chamamos a Iris para vir nos ajudar, então NÃO.
O
rapaz de cabelos acinzentados continuou sua história, antes que
aquilo virasse uma discussão: -Acontece que nesse meio tempo, um
feiticeiro negro do nosso mundo estava procurando ossos humanos para
uma poção qualquer, e acabou topando com o corpo, já descarnado,
de Gaia. Ele pegou o corpo inteiro e voltou para cá, visando usá-lo,
mas com a mudança de mundo, a alma dele também foi puxada. Como por
aqui não existe Tártaro e ele morreu no Mundo Real, sua alma
apareceu como um fantasma, sem ter lugar pra onde ir. Notando isso, o
feiticeiro se aproveitou da situação e fez outra poção, prendendo
a alma ao corpo esquelético mais uma vez. Junto com essa maldição,
Gaia também ganhou um talento: desde que tenha apenas um osso em
mãos, ele pode convocar mais esqueletos e almas, e assim formar
exércitos sob suas ordens. Por já estarem mortos, não podem ser
destruídos.
-Mas
você e o Hiei transformaram eles em pó. Literalmente. –Kira
retrucou, enquanto andava ao seu lado.
-Isso
é outra história. E, mesmo assim, é inútil, porque não podemos
matar o próprio Gaia. Ele é protegido pela magia negra de seu
“criador”, e enquanto ela não for quebrada, o capitão dos
esqueletos vivos não pode ser morto.
-E
quanto ao feiticeiro?
-Ele
foi vítima da própria criação e não conseguiu tirar proveito
dela. Gaia ficou um bom tempo quieto em um lugar da nossa cidade
natal, um vulcão extinto, Loha Aspis, até alguém surgir para
recrutá-lo. E esse alguém foi Haradja.
-Haradja…
A assassina?
-E
nossa pior dor de cabeça. –Resmungou Hiei, enquanto girava
habilmente seu bastão e o atirava para o ar, pegando-o logo em
seguida.
–Pelo
que parece, ela passou muito tempo planejando isso tudo. Agora
entendo porque as linhas de comunicação estão cortadas.
-Como
assim as linhas de comunicação estão cortadas? –Cloe parou,
enquanto perguntava.
-Não
conseguimos falar com ninguém do Reino inteiro. Estamos todos
ilhados.
-Não
se pode cortar as linhas de comunicação, são ondas, se propagam
pelo ar…
-Foi
o que eu disse. –Hiei lançou um olhar de superioridade a Mitaray
que, como sempre, o ignorou.
-Isso
não importa agora. O que importa é que todos os recrutas estão
mortos e precisamos sair daqui logo.
Ao
falar, ele notou que as árvores da densa floresta começavam a ter
um espaço maior entre si, e já era possível notar um pouco de
claridade. Eles foram andando em frente, sempre em frente. E com
grande satisfação chegaram ao fim do caminho da Ilusão. Ao
colocarem os pés para fora dele, porém, a abertura entre as árvores
por onde saíram se fechou imediatamente, deixando ver nada além de
uma parede de sombrias árvores.
-Acho
que gostaram de você, Alberich… -Hiei murmurou, enquanto
apressava-se em se distanciar o máximo possível da orla da
floresta.
-Significa
que eu ganhei certo?
-Pois
é. Mas se eu fosse você daria alguns passos de distância, antes
que elas resolvam nos levar pra dentro de novo.
-Bobagem.
-Sei
lá, vai quê…
-Não
muda de assunto, está me devendo.
-Tá,
eu perdi. O que quer que eu faça?
-Não
sei ainda. Mas eu vou cobrar.
-Você
é um elfo, não pode deixar essa passar?
-Poderia,
se você não tivesse duvidado da minha capacidade de localização.
Mitaray
revirou os olhos: -Poderia pedir algo pro filhinho dele.
-Ele
tem filho? –Um coro de vozes perguntou.
-Tem.
Um garotinho, que acabou de nascer. Por esse motivo, ele não vai
morar com a gente.
-Com
a gente?
-Sim,
a Equipe Black vive toda junta na sede. E, como saímos do Caminho,
espero humildemente que Iris nos aceite. Mas Alberich é um elfo,
acima de tudo, e tem o costume de viver na floresta, como o resto de
sua raça. E, como já disse, ele tem um filho, e pretende tomar
conta dele. Então, vai ser um agente de fora, que dará a Iris as
informações que ela precisar sem, contudo, morar conosco.
-O
que de certa forma facilita muito as coisas pra mim.
Eles
se viraram e viram Iris, seguida de perto por Crós e Kit.
A
segunda fitou cada um por instantes, como se estivesse tentando
provar a si mesma que aquilo não era una ilusão de ótica. Um
sorriso sutil foi surgindo no canto de sua boca e, num momento
seguinte, já estava perto dos outros, os abraçando e congratulando.
Um
pouco distantes, Iris e Crós trocaram olhares.
-Eles
conseguiram…
-Eu
imaginava que o resultado seria esse.
-Sinceramente,
eu fiquei um pouco preocupada… Seria difícil ela ter que se
adaptar sem os amigos por perto. Mas eles passaram, afinal.
-E
quanto a Hiei e Mitaray?
Iris
sorriu: -É claro que alcançariam a meta. Sendo quem são…
Ela
se aproximou do grupo e falou: -Meus parabéns. Vocês são o
primeiro grupo a retornar com sucesso.
-E
seremos o único. –Mitaray disse, em tom lúgubre. Vendo que ele
estava falando a sério, Iris empalideceu.
-O
que houve?
-Haradja
armou pra nós. Gaia estava no Caminho da Ilusão. Aqueles que
chegaram muito longe foram mortos. Os únicos sobreviventes, além de
nós, foi o grupo que você mesma tirou do caminho.
Iris
gaguejou algo como “tem certeza”, ao que Alberich respondeu serem
as árvores, por mais selvagens que fossem, extremamente confiáveis.
A
semi-fada forçou-se a manter a compostura. Felizmente, alguns haviam
sobrevivido. Os mais jovens e menos experientes tinham sido
resgatados por ela. Graças aos Deuses, não foram todos… Seria
isso a razão para aquele sentimento ruim que ficara em sua cabeça
nos últimos dias? Talvez fosse. Ela respirou fundo.
Então
por que aquela sensação desagradável de perigo ainda estava
bombardeando suas veias?
-Diga-me,
Mitaray. Diga-me o que mais está acontecendo.
O
rapaz a fitou longamente, antes de responder: -Gaia disse que não há
mais uma Equipe Black.
Sob
o peso daquela informação, a mulher voltou-se para Crós e pediu:
-Leve-nos pra casa.
O
feiticeiro não pensou duas vezes e disse as mesmas palavras que
fizeram com que os Vikings desaparecessem. Num átimo de segundo eles
se encontravam no começo da trilha que levava à Sede Black. A
energia liberada pelo teletransporte foi tão forte que fez com que
todos caíssem no chão, desequilibrados. Iris se recuperou
rapidamente, colocando-se em pé num salto e começando a correr. Com
dificuldade os outros foram se levantando. Kit foi a primeira, ao ter
um senso de equilíbrio felino. Ela disparou pelo caminho,
conseguindo finalmente alcançar a mulher. Uma ruga de preocupação
se formara em sua face. O suor escorria de seu corpo. A visão de uma
figura familiar sentada na soleira da porta quase a fez cair. Ela
parou, ofegante, Kit ao seu lado. Colocando a mão na cabeça dela,
ordenou, em voz baixa: -Fique aqui. Por enquanto, fique aqui.
-Mas…
-Sem
mas. –A semifada continuou, caminhando lentamente, até o jovem que
estava a porta. Seu rosto era uma máscara de tristeza. Parecia
despedaçado por dentro, os olhos vermelhos de tanto chorar. O manto
negro que usava agora estava na sua maior parte escarlate. As mãos
sujas de sangue. Ele estava em um estado de quase inconsciência, mas
a respiração de Iris chamou sua atenção ele levantou os olhos
marejados para ela. Os dois se encararam.
-Nicolas…
O que houve?
-Eu
sinto muito. Eu deveria ter chegado antes… -Sua voz não era nada
além de um sussurro sem entonação alguma. Mas algo nela era
melancólico, sombrio.
-Nick,
onde estão os outros? –Ela perguntou, exasperada. Notando o sangue
em sua roupa, e vendo que não era dele, a cor fugiu de suas faces.
-Sala
de treinamento. –Ele gemeu, num fio de voz. –Não vá lá.
Ela
avançou para a porta, esperando passar ao lado dele. O mundo
assemelhava-se a um filme mudo, e o tempo passava estranhamente
devagar. Sentiu algo tocar em seu braço. Nicolas a segurava, se
esforçando para que Iris ficasse ali. –Não vá lá, Iris. Por
favor.
Ela
não conseguia ouvir, mas lera os lábios de outras pessoas tempo o
suficiente para saber o que ele tinha dito. Um aperto tomou conta de
seu peito. Ela puxou o braço com força e se dirigiu ao subterrâneo.
Não ouvia o eco dos próprios passos ecoando no silêncio. Não
ouvia nem o som do coração, batendo ruidosamente em seu peito,
pronto para explodir. Antes mesmo de chegar ao seu destino já estava
chorando. Ha esse tempo, os outros já haviam se reunido a ela. Mas
não poderia notar isso. Eles pararam diante da porta da sala onde a
Equipe Black treinara tanto para aperfeiçoar todas as suas
habilidades. Entretanto, ao chegar lá, Iris não se atreveu a abrir
a porta. Tinha medo do que encontraria do outro lado, e tinha todos
os motivos do mundo pra isso. Ela nunca teve medo de bater de frente
com própria Haradja, o que fizera várias vezes, nem contra seu
exército de Esqueletos Vivos ou de Assassinos treinados. Mas só de
pensar no que estava atrás daquela porta, era tomado de um pavor
intenso. Mitaray colocou uma mão em seu ombro e, com a outra abriu a
porta. E, então eles viram: os corpos despedaçados de cinco membros
da Equipe Black.
Dayana
fora esmagada pelas garras que a haviam levado pra longe dos
companheiros. Dave foi cortado tantas vezes pelos lasers que estava
irreconhecível. Afinal, todos estavam irreconhecíveis, pois, por
mais que tivessem tido mortes rápidas e sutis, os lasers ficaram
passando muito tempo por cima dos corpos até acabar toda a sua
energia. O resultado era que havia sangue por toda a parte e um monte
de membros que, um dia, foram corpos humanos. Pelo menos eles não
haviam sofrido tanto, embora isso não fosse um consolo para os que
ficaram. Na realidade, eles foram uns dos poucos que não viram seus
corpos depois de morrer. E isso era muito bom, porque se vissem
agora, enlouqueceriam.
Mas
nada disso importava mais. Não era nisso que pensara Iris, ou
Mitaray, ou Hiei, ou qualquer um dos outros ao entrarem na sala. Nem
no tamanho do golpe que Haradja tinha dado neles, ou que ela se dera
bem dessa vez, ou que poderia tramar planos piores em seu desolado
castelo. A única coisa que passou pela cabeça deles foi dor. Foi
que a Equipe Black estava irremediavelmente perdida, sua essência
morta, sem ter a oportunidade de se defender. E uma promessa de
vingança escapou de cada boca, enquanto Iris caia ao chão, dando um
grito amargo e doloroso, vindo do fundo da alma, e que teria ecos até
mesmo em Soledad.
E
lá, em Soledad, havia uma mulher se divertindo com esse pesar. Seus
cabelos eram negros como as trevas e longos, seus olhos castanhos
escuros, sua pele, clara como a neve. Suas orelhas eram extremamente
pontudas e de suas costas saíam asas demoníacas, de um marrom
escuro e sem beleza. Ela deu uma gargalhada maléfica e se permitiu
sorrir depois de muito tempo. Agora não existia mais ninguém para
frustrar seus planos. Iris não podia vencê-la sozinha, Nicolas
muito menos. E a tal garota? Uma criança jamais a prenderia. Com
todas as profecias que diziam que ela cairia quando essa garota
chegasse, ela estava tranquila. Estava feliz. Sua nova aliada era
perfeita, a Equipe tinha sido destruída, reduzida a pó (ou melhor,
a pedaços, disse para si mesma).
Mas
agora era hora de formar mais planos, para tomar todo Diamond.
Afinal, ainda restavam os Deuses. Como ela os odiava, principalmente
Reidh. Ele era sempre tão irritante, espalhando suas informações,
fazendo fracassar todos os seus planos. Hera, com sua língua afiada,
Folkes, com seu jeito superior e seu fogo e luz que vinham de vez em
quando incomodá-la. E Seres, com suas malditas lágrimas que, quando
caíam, chamavam a chuva e os silfos da tempestade. Detestava-os, mas
se comprazia com a dor da Sereia, sabendo que a causadora fora ela
mesma, que mandou destruir a cidade que a Deusa tanto amava. “Mas
um ponto para você, Haradja” pensava.
Queria
virar o jogo, e chamou sua mais nova sócia. –Venha, Cassandra.
Faça com que as linhas de comunicação voltem a funcionar, quero
que todos os cidadãos, em cada buraco desse Reino, saibam que seus
heróis pereceram. E, além do mais, temos uma semi-fada para caçar…
Não,
ela sabia que não havia alma viva que pudesse derrotá-la. Mesmo que
fosse uma garota trazida de volta por Deuses. Mesmo que ela fosse Kit
Black.
~Kit Black
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