Quarto
capítulo: O Caminho da Ilusão (parte IV).
Eram
oito e quarenta e cinco. E o começo do fim se espalhava pela Sede
Black como uma praga, que devorava tudo que estava ao alcance.
Pandora
ainda estava de olhas vermelhos de tanto chorar. Dave, não sorria
mais. Ele se desfazia em tristeza junto à mulher que sempre amara e
que jazia morta, com um talho feio na garganta…
Como
acontecera? Quando acontecera? Eles não sabiam. E estavam
preocupados demais discutindo, chorando e se desesperando para
perceberem a verdadeira culpada. Ocupados demais para pensar nela.
-Não…
Precisamos avisar alguém. Alguma coisa está errada.
-As
linhas de comunicação foram cortadas. –Alguém gemeu em resposta
ao comentário de Aaron.
Dayana
pela primeira vez em muito tempo mantinha sua energia hiperativa
zerada. –Quem fez isso? Quem poderia…
A
resposta estava na cara dela. Quem chegara do nada na Sede, sem dar
qualquer aviso, agindo de modo estranho?
-Não
pode ser… –Aaron levantou-se num átimo. –Ela não pode...
Aaron
não pôde terminar. Um raio de luz vermelha atravessou seu peito.
Provavelmente só teve tempo de pensar algo como “o que?” antes
de cair. Algo tão rápido que os outros não tiveram chance de se
proteger...
Dayana
foi pega por garras metálicas que a levaram para longe da vista dos
remanescentes. Dave não teve tanta sorte... Pandora, em seu
desespero, foi a única que conseguiu se desviar dos lasers e das
garras. É o fim, pensou. Lançou seus olhos em direção ao corpo de
Aaron. Não precisava enxergar para saber que ele não respirava
mais. Não precisava ver para ter a certeza que ele nunca a abraçaria
de novo. Que o tinha perdido. E se havia perdido tudo com o que se
importava, não havia motivos para continuar viva.
Ela
tinha toda a habilidade para se safar das flechas que vinham em sua
direção. Agora estava novamente ajoelhada, desta vez sobre o corpo
da única pessoa que amara mais que a própria vida. Que vida? Ela já
não tinha significado. Sabia que deveria sobreviver. Deveria contar
a Iris…
Pandora
não saiu de frente das flechas. Pandora não iria a lugar algum.
Estava certa disso. Iris entenderia. Hiei e Mitaray entenderiam.
Nicolas entenderia também.
Alguns
instantes de dor insuportável, e Pandora, a jovem cega que lutava
melhor do que quase todos ali, que tinha tudo pra ter sobrevivido,
não existia mais…
-E
então, garota, que tal aprendermos alguma coisa enquanto esperamos?
-Está
falando sério?
–Mas
é claro.
Kit
fitou Crós por uns instantes. Ficara pálido de repente. Estranho.
-Você
está bem?
Ele
abaixou as orelhas. –Mau pressentimento. Mas talvez não seja nada.
Ela
não estava convencida, mas também não discutiu. –E então…
–começou. –Como é essa história de aprendiz de mago?
-Feiticeiro.
-Tanto
faz.
-É,
tanto faz. Mas feiticeiro soa mais assustador. E faz com que não
encham a sua paciência. –Crós fechou os olhos, provavelmente
imaginando que não ajudara muito em seu caso. –Ou talvez não.
-E?
Continue.
-O
que você quer saber?
-Bem…
Pra começar, por que não posso voltar atrás na minha ideia de ser
uma aprendiz?
-Essa
é fácil. Porque você estaria sob julgo das trevas caso recusa-se.
A
garota o olhou, confusa. –Como assim? Eu não tenho nada com as
trevas. Eu acho, pelo menos…
-Não,
você não tem. É verdade. Mas uma vez que você pede para um
feiticeiro ser seu instrutor, automaticamente está se pondo em
xeque. É uma coisa perigosa. Você, neste momento, está com todos
os olhares mágicos presos em si. Ou fica do meu lado e cumpre o
trato que você mesma propôs sem saber, ou fica livre. Mas creio que
estar livre não é uma opção pra você. E não estou dizendo isso
por que quero que seja minha aprendiz.
-Por
quê?
-Como
eu disse, toda a magia se converge para você quando se faz um pedido
para aprendê-la. Mas não há apenas uma magia. Existe um outro
lado. Para tudo existe um outro lado.
-Magia
negra.
Ele
assentiu com a cabeça. –Um trato com a magia é permanente. Se eu
te deixar ir, você será pega pelo lado negro. Por que, logicamente,
quem rejeita a luz…
-Abraça
as trevas. –Ela completou. –Agora entendo. Então não há outro
jeito.
-Queria
dizer que não, mas a escolha é sua.
O
meio gato fitou o céu, com esparsas nuvens brancas a romper o azul.
–Mas… se quiser saber de uma coisa… Eu adoraria ter você como
aprendiz. Acho que me divertiria mais. E sou da opinião que não se
pode desistir sem tentar.
-É…
Concordo. O que você ia me ensinar mesmo?
-Acho
melhor começarmos do básico. A teoria…
-Caramba…
Kira
deu um tapinha no ombro do irmão: -Pois é. E então, Sabe Tudo,
como saímos?
O
rapaz deu uma volta completa em torno de si mesmo antes de responder:
-Não sei.
-Seu
senso de direção é terrível, Ken. Agora estamos perdidos.
–Alegou Cloe, olhando em volta.
-Perdidos
num lugar estranho cheio de seres terríveis que estão doidos pra
nos comer no café da manhã. –Completou Sacha.
-Nós
não estamos perdidos…
-Estamos
o que, então, procurando uma lanchonete?
Ele
se absteve de responder a irmã e voltou a procurar o caminho certo.
Estavam em umas das muitas encruzilhadas de trilhas que se abriam no
meio da mata. Deviam estar pra lá de perdidos. Aliás, era bem capaz
de estarem perto do lugar onde Judas perdeu as cuecas, por que ele já
não teria mais nada pra perder…
-Em
frente.
-Tem
certeza?
-Não,
porque estamos perdidos. –Ken respondeu, mal-humorado.
Todos
o seguiram, entretanto, pela trilha que seguia em frente, se
embrenhando mais e mais entre as grandes árvores. Agora já não se
podia ver o céu, e quase nenhuma luz chegava a eles. Sons
desagradáveis saiam das sombras, sugerindo algo sinistro escondido
em algum lugar por perto.
-Ah,
gente?
-O
que foi, Sacha?
-Aquela
árvore não estava ali a um segundo atrás.
Realmente,
aparecera uma grande árvore tampando a passagem. Para contorná-la,
teriam que sair da trilha.
-Não
estou gostando disso. –Disse Cloe.
-Nem
eu. –Kira abriu bem os olhos, tentando ver algo suspeito, mas a
semiobscuridade só deixava ver a árvore no meio do caminho.
-Já
se passou uma hora?
-Não
sei, acho que não.
-Bem,
estamos ouvindo gente gritar desde que passamos da areia movediça.
–Cloe contou.
-Kira
arriscou um palpite: -Talvez tenham sido os vikings. Disseram uma vez
que eles não eram conhecidos por seu intelecto.
Ela
estava certa. Areia movediça… Cortesia de um feiticeiro meio gato.
Como Crós disse, eles não passaram nem dos primeiros metros.
-Enquanto
Hiei e Mitaray não nos encontram, temos que nos virar… É um
teste, esqueceram?
-Esqueceu
que no nosso grupo temos duas garotas com um conhecimento quase nulo
de luta? –Atacou Kira, o que fez Ken pensar melhor e se calar.
Parecia que a pedra em sua testa estava fazendo um pouco de efeito,
afinal.
Olharam
novamente para a árvore. Agora seus galhos se estendiam na direção
deles, como garras afiadas e mortais.
-Ela
estava assim há alguns segundos?
-Não…
Ken
parou de falar e se esquivou a tempo de burlar uma verdadeira
“galhada”. Lançou os olhos verdes à frente. Não era mais uma
árvore só. Agora era uma parte da floresta que se recusava a
deixá-los seguir.
-Presos
por vegetais? Ninguém merece! –Resmungou Kira, se desviando
também. –Não vou perder para seres sem inteligência e
fotossintetizantes.
Cloe
pediu em pensamento. Suas orelhas e todos os outros atributos lupinos
surgiram imediatamente. Estalou o chicote contra o galho mais perto,
que tentava agarrá-la. Não que isso tenha ajudado muito. Numa
fração de segundos ela já estava enrolada.
Por
sua vez, a contragosto, Sacha seguiu o exemplo da amiga. A única
vantagem nisso é que, sendo um pássaro, ela conseguia desviar das
investidas muito fácil. Ao pousar num galho, usou os olhos de
retinas grandes feito as de um falcão para mirar na árvore que
mantinha Cloe em cativeiro. Uma dúzia de flechas saídas com uma
velocidade incrível do seu arco cortaram os galhos, e Cloe já podia
se mexer novamente.
A
garota olhou pasma para Sacha, antes de murmurar um “valeu” e
desfiar com as garras um outro ramo que ameaçava prendê-la
novamente.
Ken
parou um instante para pensar. Subitamente, depois de esquivar-se de
um golpe quase fatal, gritou a primeira pessoa que veio na sua
cabeça.
-Kira!
-Que
que é?
-Ainda
tem aquele isqueiro que ganhou do seu último namorado esquisito?
-Ele
não era… Tenho.
-Me
dê.
Ela
desceu velozmente pelos galhos da árvore que ameaçava destruí-la e
atirou para o irmão um pequeno cilindro prateado. Ken o agarrou em
pleno ar, e puxou de um dos bolsos da calça um vidrinho
transparente, com um pó negro e estranho dentro.
-Pólvora!?
–Cloe murmurou, perguntando logo depois: -De onde você tirou isso?
-Peguei
na grande tenda. Tinha um monte desses potinhos, bem num canto. Quase
imperceptíveis.
-Espertinho,
você…
O
rapaz coçou desconfortavelmente a cabeça, com um sorriso amarelo
nos lábios.
-Kit
ficaria admirada. –Gritou a garota, abaixando sob uma das árvores,
que foi atingida em cheio pelas garras da irmã. –Mas é melhor
andar logo com isso, não temos muito tempo.
-Melhor
vocês tomarem distancia, porque vai ser uma explosão dos diabos.
Quase
que imediatamente, cada uma das três garotas foi para um lado
diferente. Ken olhou bem, certificando-se que elas estavam longe o
suficiente, e abriu o pote, dispersando o pó no meio das árvores.
Tomou distância, acendeu o isqueiro e o atirou em direção à
pólvora, correndo logo em seguida. Um clarão vermelho e laranja
surgiu, junto com um estrondoso barulho de explosão. Para quem
estava fora, no campo verdejante que ficava fora do Caminho da Ilusão
(Kit, Iris e Crós), dava pra ver uma nuvem de fumaça sair de dentro
das árvores e se perder no céu. Não pela última vez.
Os
quatro se levantaram juntos, sacudindo a poeira das roupas. Os
vegetais que a pouco tempo queriam matá-los jaziam sem vida,
encobertos por chamas. Logo as chamas também se extinguiriam.
-Temos
que continuar. –Argumento Kira.
-É,
temos. –O irmão dela concordou, se espreguiçando e apontando para
frente. –Parece que achamos novamente nosso caminho.
Uma
trilha se estendia a frente deles, parecendo não ter fim.
-Já
estava na hora, Senhor GPS.
-Muito
engraçado.
-O
que diabos foi isso? –Questionou Kit.
Crós
olhou vagamente por cima dos ombros. –Parece que alguém achou os
potes com pólvora.
-Pelo
menos tem alguém inteligente ali no meio… -Resmungou Iris,
enquanto carregava de volta o último dos Vikings. Com uma porrada
violenta, fez com que ele parasse de gemer e atirou-o junto aos
companheiros. Com desagrado, Kit reparou que era o mesmo que olhara
pra ela na tenda.
-Crós,
consegue fazer uma magia para mandá-los direto pra o Hospital
Central?
A
jovem garota lançou um olhar penalizado para os guerreiros caídos.
Afinal, ser teleportado por Crós era quase suicídio, e ela
descobrira há pouco tempo isso. Ela poderia não admitir, mas
ficaria traumatizada pelo resto da vida por causa disso.
-…
Depois os mandamos de volta para o lugar de onde vieram… -Iris
continuou. A semi-fada fitou o mago de esguelha. –E Crós…
Mande-os para o hospital, não pro cemitério.
Ele
respondeu com um olhar cético e uma ruga de contrariedade na face.
Murmurou algumas palavras ininteligíveis (as quais Kit não sabia se
eram xingamentos ou parte do feitiço). Mas ao ver algo como um
círculo mágico envolver os feridos e fazer com que desaparecessem,
ela teve certeza que era um feitiço.
Crós
lançou outro dos seus olhares céticos. –Quer ligar pra ver se
chegaram?
-É
impossível, nossas linhas de comunicação estão cortadas.
-Que
seja…
A
mulher de olhos castanhos avermelhados girou nos calcanhares. A
sensação de que aconteceria algo ruim não a abandonava. E Crós
também estava desconfortável. Algo estava fora do normal…
Encarou
o rolo de fumaça escura que subia do meio do Caminho da Ilusão.
Quem havia conseguido achar a pólvora era inteligente, sem dúvida.
Muitos provavelmente passaram por ela e nem notaram. Sorriu pra si
mesma. Aquela garota trouxera com ela gente interessante…
-Me
parece que agora vamos ter de ficar duas vezes mais alertas, minha
amiga.
-Quanto
mais ao fundo do Caminho eles entrarem, mas difícil será sair sem a
ajuda de fora. –A semi-fada argumentou. –Em compensação, quanto
mais fundo chegarem, mas prestigio terão e mais perto da vitória
estarão.
-Isso
se sobreviverem.
-É
pra isso que estou aqui.
-Acha
mesmo, minha cara, que é somente a vida que eles correm o risco de
perder lá dentro?
Iris
não respondeu. Sabia muito bem o que ele tinha a dizer. Talvez para
reafirmar, ou por que Kit estava lá, Crós continuou: -Eles correm o
risco de perderem a razão. De enlouquecerem.
-Sei
disso.
-Eu
sei que sabe. –E, virando-se para kit, que já empalidecera
totalmente: -Não faça essa cara. Já te disse, tenha fé. E além,
do mais…
-Além
do mais?
-Agora
que vai começar a diversão…
Ela
não tinha gostado nadinha daquela afirmação.
Nicolas
parou sua motocicleta em frente à Sede Black. Um silêncio agourento
pairava no ar, como a calmaria que precede uma tempestade. Ele
trilhou pelo caminho que levava a mansão. Chegou à porta, tocou a
campainha… Nada. Ninguém o recebera. Nem mesmo Dayana, com seu
sorriso elétrico, quase nocivo, e sua hiperatividade natural. Ela
sempre estava lá para abrir-lhe a porta.
Ele
procurou em seus bolsos e puxou um velho cartão. Um cartão negro,
com um dragão vermelho gravado, assim como aquele que estava no
comunicador de Iris. Há muito tempo que ele não precisava usá-lo.
Ao lado da porta, na parede, uma pequena fenda se mostrava aberta, e
foi nela que o Senhor do Palácio de Granito passou o cartão. Quem
olhasse de relance não veria nada mais que um buraco na parede, mas
assim que ele enfiou o cartão, um barulho sucessivo de trancas se
abrindo foi ouvido, e a porta se escancarou, deixando livre o
caminho.
Sua
primeira atitude foi gritar o nome de todos eles, mas, não obtendo
resposta, ideias obscuras começaram a passar pela sua cabeça. Seus
passos ecoavam sinistramente pelos corredores vazios, enquanto ele se
dirigia inconscientemente para o subsolo. Para a sala de treinamento…
Um
desespero foi brotando lentamente em seu peito. Algo estava errado.
Muito errado. Quando ele se aproximou da porta da sala de
treinamento, sentiu um cheiro. Um cheiro forte e acre, que só
poderia ser uma coisa… sangue. Muito sangue.
Ele
abriu a porta, e o que viu quase fez seu coração parar. E ao cair
de joelhos, com os olhos cegos de lágrimas, viu tudo aquilo que ele
acreditava ruir aos seus pés.
~Kit Black
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