Terceiro
capítulo: Remorso (parte I).
“Alyson,
acorde”.
“Não
quero”
“Mas
precisa. Estamos chegando a Europa”.
“Quem
é você?”.
“Alguém
muito especial na sua vida”.
“Mas...
quem?”.
“Não
convém que você saiba agora... mas vai descobrir”.
“E
vai demorar muito tempo para isso?”.
“Talvez.
Lembre-se que o tempo foi criado pelos seres humanos, na tentativa
fútil de dizerem que vivem muito. No fundo, o tempo não existe. Mas
isso não quer dizer que você está mais perto de saber quem eu sou
ou quem é. A vida é feita de instantes. E o seu ainda está longe
de começar. Ainda.”
“Eu
não gosto de esperar”.
“É
preciso paciência na arte de aprender. Por isso, também precisa
acordar”.
“Eu
não sei o porquê, mas... às vezes tenho vontade de deitar, fechar
os olhos e nunca mais acordar”.
“Esse
é um pensamento um pouco egoísta. Eu sei o que se passa em sua
mente e em seu coração. Também sei porque não quer despertar. Mas
acredite, dormir pela eternidade não é o melhor jeito de resolver
essa situação. Acredite em mim... Vai passar”.
“Tomara
que esteja certa”.
“Eu
estou. Agora você precisa despertar para a vida que segue. Precisa
abrir os olhos e enfrentar seus medos, por mais uma vez”.
Alyson
abriu os olhos e a claridade inesperada a cegou momentaneamente. Ela
piscou repetidas vezes para se acostumar com a luz, se ajeitou na
cadeira e espreguiçou-se. Estava pensativa. Perguntava-se de quem
seria aquela voz que sempre se manifestava quando ela mais precisava.
Nos momentos mais sombrios de sua existência. Na primeira vez que se
manifestou parecia ser de uma mulher incisiva, que não tinha receio
de revelar sua morte.
Mas
desta vez era calma e tranquilizadora. Como a de uma mãe, que se
concentra em passar uma lição importante para a filha, da melhor
maneira possível. Olhou pela janela e teve a agradável sensação
de poder constatar que a Europa estava entrando no seu campo de
visão.
Foi
tirada da sua admiração por Cloe, que a cutucou com uma caneta.
Tinha os cabelos cacheados presos em um rabo-de-cavalo, e segurava
uma daquelas revistas de palavras cruzadas. -Bom dia, Bela
Adormecida. Pensei que tinha desligado de vez.
-Quem
me dera.
-Olha,
sem querer me intrometer na sua vida, mas...
-Mas?
-Brigou
com o príncipe encantado, foi? -Perguntou Cloe, num fio de voz,
enquanto apontava a caneta para Ken.
-Acho
que não é tão príncipe encantado assim. Transformou-se num sapo
da noite para o dia. -Alyson resmungou, num sussurro.
-Você
ouviu o que ele tinha para dizer?
-Ouvi.
Por isso estou assim.
-Se
eu fosse você, ia conversar com ele. Seja lá o que for que o Ken
disse, pode ter sido sem querer. Sem pensar.
-Eu
não sei... Estou muito zangada com ele. E não quero perdoar, nem
voltar atrás na minha palavra.
-Mas,
Ly… -A jovem fez uma cara enfezada ao ouvir o apelido, mas Cloe a
ignorou, continuando: -Não deve jogar no lixo uma coisa que você
quis tanto conseguir.
-Tem
certas coisas que não podem ser perdoadas, Cloe.
-Eu
sei... Olha só com quem você está falando, eu nunca fui conhecida
por ser especialista em romance. Só Deus sabe quantos erros eu
cometi em dois anos. Você só sabe de alguns. Mas você... Sei lá,
o Ken te olha de uma maneira que eu sempre desejei que olhassem para
mim. Sei que a vida é sua, mas cuidado para não fazer uma escolha
da qual você vai se arrepender mais tarde.
-Pode
deixar, eu vou pensar bem. Mas não quero falar com ele, por
enquanto. Pode dar tudo errado, nós dois brigarmos mais uma vez e a
situação pode ficar pior. -Comentou Alyson, levantando-se com Cloe
e indo para o pequeno compartimento de cargas, onde estavam alguns
alimentos que eles compraram na última parada.
-Mas
deixando essa história para lá e voltando para a viagem, vamos
descer daqui à uma hora. -Disse Cloe.
-Já?
-Ora
essa, você acha mesmo que vamos passar por Paris e não vamos
aproveitar a oportunidade?
-Paris,
é? -Repetiu, e as duas cantarolaram, brevemente: -Ulala!
-E
vamos dar uma paradinha em Veneza também, então não se espante.
-Espantar?
Essa é a melhor viagem que eu já fiz na minha vida. -Admitiu
Alyson, completando, fechando os olhos e abrindo um sorriso: -Veneza
e Paris!
-Não
se empolga muito não, é só uma PARADINHA. Lembra, não podemos
perder tempo. -Avisou Cloe, abrindo uma lata de Pepsi e colocando um
canudo dentro.
-Mas
é claro que não. -Se defendeu a jovem, fazendo o mesmo que Cloe e
sugando o refrigerante. -Eu nem pensaria em deixar Diamante em
segundo plano para passear em Veneza.
-Sabe
que não foi isso que eu quis dizer. É que você anda meio
distraída, só isso. -Desculpou-se Cloe, pegando um pedaço de bolo
junto com Alyson e a acompanhando até a cabine, onde Ken dirigia e
Crós tentava explicar os efeitos da poção “luz da meia noite”
para Sacha, sem muito êxito.
-Bom
dia para vocês. -Saldou Alyson, sentando-se ao lado de Crós. -Por
que não tira essa capa, está muito calor.
-Estou
bem assim. Acredite.
-Ah,
eu acredito sim, se acredito. –Ela retrucou, torcendo as mãos onde
minutos antes estava um pedaço de bolo.
-Você
tem que se acostumar a acordar cedo, pirralha. Lá na Sede Black você
não vai ter essa moleza não, viu?
-Tá
me chamando de preguiçosa, é? -Perguntou a jovem, ficando
escarlate.
-Não,
só estou fazendo um comentário inocente. -Alegou Crós, calmo como
se nada tivesse acontecido.
Ken
fez um esgar e concentrou-se novamente nos controles da aeronave.
Cloe, que havia se encostado na poltrona dele, abaixou a cabeça
discreta e murmurou no seu ouvido: -Fica esperto. Vai perder ela se
não resolver agir.
-Eu
já me acalmei, já refleti e já me arrependi. -Protestou Ken. -Quer
que eu faça mais o quê?
-Fale
com ela.
-Para
quê? Para brigarmos de novo? Olha eu gosto muito dela. Muito
mesmo...
-Dá
pra ver.
-Mas
eu sei que estou fazendo ela sofrer. Entende? Se é melhor para ela
ficar longe de mim, então vou me afastar.
-Chegou
a essa conclusão faz muito tempo?
-Na
realidade, pensei nisso agora.
-Viu
só? Você não pensa muito antes de dizer certas coisas. Faz o
seguinte: pensa com carinho em todos os detalhes e fala com ela...
Não custa nada. -Aconselhou Cloe, e, abaixando mais ainda a voz,
avisou: -E de preferência, não demora muito não, porque daqui a
alguns minutos vamos descer em Paris. E sabe que aqui está cheio de
rapazes lindos e românticos. Se não tomar cuidado, Ken, outro vai
acabar pescando o seu peixe.
-Vou
me lembrar disso.
-Pro
seu bem, acho bom lembrar mesmo. -Ela concluiu, e se afastou.
-Aaron!
Aaron, onde raios você se enfiou? -Berrava a plenos pulmões uma
jovem de 17 anos. Ela parou no meio do corredor, inspirou
profundamente e gritou novamente: -AARON!!!!!
-O
que foi, o que houve? -Retrucou um homem de 25 anos, cabelos
arrepiados e olhos azuis imponentes. -Oi, Dayana.
-Onde
você estava, em? Procurei você na Sede Black inteirinha!
-Sala
das Máquinas, subterrâneo, ala B. Satisfeita? Agora me explica
porque você está berrando o meu nome aos quatro ventos.
-A
Iris está te chamando. Disse que é urgente. -Dayana respondeu,
prontamente.
-Onde
ela está?
-Conversando
com o Senhor do Palácio de Granito... Pelo computador.
Aaron
deu um sorriso amargo e retrucou: -Estou indo... Por mais que ver
aquele idiota me doa.
-Ele
não é uma pessoa má.
-É.
Mas poderia estar aqui agora se não fosse tão tolo.
-Também
acho isso, mas...
-Você
é jovem demais para entender, Dayana. Até mais... -E, dizendo isso,
se afastou.
Aaron
atravessou o corredor, deu um “olá” básico para Taylor (outra
integrante da equipe), e entrou na saleta em que ficava o computador.
Iris tinha acabado de cortar a ligação com o Palácio de Granito, o
que fez Aaron dar um suspiro antes de entrar na saleta. Ele pigarreou
para avisar a comandante que havia chegado e foi para seu lado. Iris
estava lívida, os olhos fixavam o nada e parecia que um caminhão a
havia atropelado.
-Ainda
não chegou?
-Ainda
não. Isso está me cheirando à encrenca. -Retrucou Iris enrolando
uma mecha de cabelo no dedo indicador. -Já mandei o Crós buscá-la
há dois dias. Ele devia ter se comunicado.
-Talvez
as ondas transmissoras dos nossos comunicadores não estejam
conseguindo ultrapassar a fronteira com o Mundo Real. -Sugeriu Aaron,
despreocupado. -Sabe que nossas ondas são um pouco diferentes das do
lado de lá.
-Claro,
claro, sei disso, Aaron. Mas... Sei lá, não estou com um bom
pressentimento. Estou encucada desde anteontem com alguma coisa, e
não sei com o que.
-Talvez
não seja por causa da demora.
-Pois
é. Mas é bem melhor prevenir do que remediar. Vou tentar mais uma
vez fazer contato. Mas também tem outra coisa que está me
intrigando.
-O
que?
-Haradja
não anda dando sinal de vida. Faz um bom tempo que ela não tenta
sair da Torre da Perdição. Não tentou mais botar as patas para
fora do seu domínio... É estranho.
-Tenho
que concordar. Deve estar tramando alguma.
-Com
toda a certeza. Temos que ficar de olhos bem abertos, meu amigo.
Arregalados, se preciso.
Aaron
assentiu com a cabeça e perguntou: -E quanto à prova de amanhã?
-O
Caminho da Ilusão está pronto?
-Quase.
-Sem
problemas então. -Alegou Iris, dando um sorriso e completando, outra
vez sombria: -Nicolas disse para vocês ficarem aqui na Sede. Haradja
pode atacar enquanto eu e Crós monitoramos a prova.
-Você
só pode estar brincando se acha que eu vou obedecer a uma ordem
dele.
-A
ordem é minha. Ele só concordou. Agora anda logo e avisa aos
outros. -Ela mandou e virou-se para o computador novamente.
Aaron
fez uma careta de insatisfeito, mas não ponderou. Apenas disse um
“sim, senhorita”, totalmente desnecessário e saiu da sala.
Quando a Iris dava uma ordem, era bom que obedecessem. Todos, de
preferência. Você, caro (a) leitor (a) já deve ter ouvido falar no
ditado: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo!”.
No
caso da Iris, ele se encaixava muito bem. E falando nela, uma sombra
de preocupação invadia seu rosto, enquanto fitava sem enxergar a
paisagem que formava o papel de parede do monitor.
-Droga!
-Resmungou Cloe, enquanto massageava a mão que ela havia cortado,
sem querer, com uma faca. O sangue começou a brotar do ferimento,
fazendo a jovem xingar feito uma possessa. Ela estava tentando
desencapar uns fios, e a faca escapou de seus habilidosos dedos, indo
cravar-se, como já foi dito, na sua mão esquerda. Lágrimas vieram
aos seus olhos, tornando a sua visão um pouco embaçada.
Desse
jeito ficava meio difícil ela divisar onde estava a caixa de
primeiros socorros, a qual havia deixado ao lado de si por desencargo
de consciência. -Mas que droga... -Ela secou os olhos com o dorso da
mão boa e conseguiu finalmente ver a caixinha (que estava na posição
justamente contrária a aquela que Cloe estava olhando, minutos
antes).
Sem
se alarmar, pegou rapidamente uma gaze, limpou o sangue, aplicou um
pouco de álcool e fechou o ferimento com outra gaze. Passou uma
faixa rapidamente para ter certeza de que ia ficar bem seguro,
prendeu com esparadrapo e olhou de soslaio para os fios, a maioria
desencapada, que tinham feito ela perder seu precioso tempo.
Sem
demora guardou-os. Era melhor deixar para outra hora, antes que ela
acaba-se cortando a outra mão. Pensou com alegria que logo estaria
em Paris. Se você, caro (a) leitor (a) procurar um Atlas vai
perceber que nem de longe Paris e Veneza estão em meio caminho da
Inglaterra. Não, isso não é um erro de calculo. O que aconteceu é
que durante a manhã, Ken e os outros (exceto Alyson, que estava
dormindo), receberam um comunicado de uma agencia de voo avisando
que seu avião ia passar por aquela rota original, mas ou menos na
mesma hora em que eles passariam também por ela. Pra evitar
discussões desnecessárias, Ken mudou o rumo, dando a volta, e
entrando na Europa pelo espaço aéreo Francês.
Cloe
foi para a cabine onde os outros estavam. Alyson tinha o pensamento
longe, muito longe mesmo, perdido no vazio da sua própria mente. Ken
estava concentrado na direção, como sempre. Sacha fitava tranquilamente as unhas, pintadas de rosa berrante. Crós lia um
livro calmamente, sentado na cadeira do co-piloto. O silêncio mortal
só era rompido pelo motor do avião. Cloe olhou para um de cada vez
e parou junto a Sacha, que tirou os olhos da sua mão dizendo um “oi”
para cravá-los na mão enfaixada de Cloe. Fez uma careta de quem não
entendeu nada, o que era bem típico.
Ken
quebrou o clima estranho avisando, em alto e bom som: -Vamos pousar.
-E completando, fazendo voz de comissária de bordo: -Senhores
passageiros, por favor dirijam-se aos seus devidos bancos e apertem
os cintos.
Todos
obedeceram prontamente, dando boas gargalhadas, menos Alyson, que se
sentou calada e se afundou em sua “semi-inconsciência”
novamente. O hidroavião começou a descer lentamente, e logo eles
puderam ver a Torre Eiffel ao longe.
~Kit Black
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