Crós
olhou para o céu. A noite começava a descer, e as primeiras
estrelas apareciam à distância. Sentiu dor. Não era uma dor
física, que podia ser curada à base de feitiço ou erva. Era muito
pior que uma simples dor. Algo que ele experimentava raras vezes, em
ocasiões mais raras ainda: solidão, impaciência e impotência.
Receio, tormento e acusação. Devia ter dado ouvidos a ela. Devia
ter andado rápido. Já deveria estar em Diamond ao seu lado. Ao
lado daqueles que eram a família que nunca teve. Seres estava
sofrendo, e isso é alarmante. Significa que algo muito ruim estava
acontecendo, algo muito ruim. E, mais cedo ou mais tarde isso
afetaria seus amigos. Iris e os outros estavam com problemas, ou
quase lá, e talvez ele não chegaria a tempo.
Ele
cobriu o rosto com as mãos, lutando para conter as lágrimas e
respirou fundo. Viu as meninas voltando para o hidroavião, enquanto
pensava que não podia perder tempo. -Graças aos Deuses! -Menos isso
para se preocupar. Dirigiu-se para a máquina controlando a
respiração, de passos firmes. Não podia mostrar a eles fraqueza.
Daria a impressão de que iriam lutar por uma causa perdida, e isso
era a ultima coisa que o mago queria. Primeiro porque ele ainda tinha
fé, e segundo porque o desanimo custa caro. Caro demais para se
arriscar.
Mas
sempre chega uma hora em que a fé começa a enfraquecer, começa a
falhar. E Crós sentiria isso, mais cedo do que podia imaginar.
“Francis,
venha rápido. Vou partir hoje à noite. Não há tempo. Traga as
pedras”.Ele chamou em pensamento, e entrou no hidroavião, um pouco
depois de Cloe e Sacha. Todos voltaram sua atenção para ele.
-Precisamos
ir. -Declarou, firme, e completando: -Vou esperar Francis chegar para
pegarmos as pedras mágicas e daremos no pé.
Alyson
arqueou um pouquinho as sobrancelhas, se perguntando desde quando um
feiticeiro dizia “daremos no pé”, mas preferiu ficar quieta.
Recostou-se confortavelmente no banco e se obrigou a pensar num meio
de dizer a Francis que não estava interessada nele, sem parecer
convencida ou insensível.
O
imperador de Diamond estava bastante preocupado. E não era para
menos. Aos seus pés, no salão principal do Palácio de Granito,
Seres estava estendida, chorando desconsoladamente. O Senhor do
Palácio de Granito adentrou no salão, aparentemente aflito. O manto
negro que usava farfalhava a cada passo. Era um rapaz bonito, alto,
de 27 anos, cabelos escuros e curtos, olhos castanho
esverdeados
e pele bronzeada. Não dava para divisar o seu corpo por causa do
traje, mas ele tinha um corpo escultural, musculoso na medida certa.
Nicolas
fez uma reverencia. O velho imperador, de olhos claros e penetrantes,
expressão afável e cabelos grisalhos fez um sinal para que o rapaz
levantasse e chegasse mais perto.
Os
olhos dele passaram por Seres. A Deusa da água se encolheu e olhou o
recém-chegado. O rosto delicado estava vermelho e um pouco inchado
por causa do choro. Os olhos, azuis claros, também estavam
vermelhos. Os cabelos, de tom azulado, cacheados e compridos até os
ombros, estavam molhados e embaraçados. Ela vestia um vestido
branco, com decote em forma de V, babados e brocados nas mangas
curtas e um corte meio aberto embaixo. Era raro vê-la desse jeito,
pois Seres era uma sereia, e na maioria das vezes estava dentro
d’água, com as pernas transformadas em uma calda azul-turquesa e
usando um top da mesma cor.
-Oi,
Nicolas. -Sussurrou a Deusa, controlando o choro.
-Majestade.
-Ele cumprimentou, fazendo outra reverencia, e finalmente
abaixando-se ao lado da Deusa, perguntou: -O que houve, Seres? Por
que está chorando?
A
divindade se ajoelhou no chão e tocou com o dedo indicador uma
pequena poça, que tinha se formado com suas lagrimas, começando a
falar: -Ela destruiu a Cidade que eu criei com minhas próprias mãos,
com meu próprio sangue. A Cidade Das Águas foi destruída, agora só
existe água suja de sangue e ruínas. Só a parte norte foi poupada,
e isso porque Haradja quer utilizar o castelo que foi construído lá
como estadia de verão. Ela conseguiu entrar lá, não sei como, e
matou a maioria dos habitantes. -Enquanto Seres falava, na poça de
água salgada apareciam imagens de destruição, guerra, ruínas,
pessoas sendo mortas sem poderem sequer lutar. Quando a Deusa
terminou, a poça que antes era límpida e cristalina se transformara
em sangue.
Seres
retirou o dedo e olhou para Nicolas e para o imperador, Erom.
Novamente uma sombra de angústia passou pelo seu rosto, e seus olhos
embaçaram. -Eu não pude fazer nada... Não posso fazer nada. Os
deuses só tem permissão de intervir quando se confrontam com outros
deuses.
-Não
devia ter mostrado essas cenas para nós, majestade. Vai sofrer ainda
mais desse jeito. -Comentou Erom, num fio de voz.
-E
não queremos que sofra. -Complementou Nicolas. -Me desculpe, a culpa
foi minha. Eu era o responsável por vigiar Haradja. Eu falhei...
Mais uma vez. Com vocês dois, com os outros deuses, com Iris, com
todo mundo... Principalmente com os habitantes da Cidade das Águas,
deixando-os a mercê de algo contra o qual não poderiam lutar.
-Não
se culpe, Nicolas. Nem nós, deuses, previmos isso. Ninguém poderia.
Foi um ataque surpresa, bem arquitetado. Os vigias de Soledad foram
pegos numa armadilha, para que ninguém pudesse nos informar do
ataque. O que podemos fazer é nos concentrarmos nas outras cidades,
principalmente aqui em Sybelle e em Farem, onde a maré vai bater
mais forte... -Seres interrompeu-se, suspirando, e alegou:
-Precisamos nos reunir com Folkes, Reidh e Hera, precisamos da
garota, e precisamos avisar à Iris.
Nicolas
parou para pensar por alguns momentos e bateu a mão na testa: -O
teste... Ela vai tentar sabotar o teste. Quantas horas?
O
imperador olhou para o grande relógio de pendulo que adornava o
salão principal: -Meia noite e meia.
-Temos
pouco tempo. O teste começa as oito em ponto. Imperador, preciso
usar o computador principal... Se me dão licença... -Ele se curvou
mais uma vez e saiu da sala, o mais rápido que o piso escorregadio
deixava. Seus pés derraparam quando ele saiu do salão, rumo à sala
do computador central, onde ele tinha recepção boa o suficiente
para contatar Farem e Iris.
Ele
ligou o computador e esperou-o carregar (o que demorava quase meia
hora, pois à noite a carga de energia mandada pelo Palácio era bem
maior que de dia.), rezando para que desse tempo. Se acontecesse algo
com Iris ou com os outros, ele jamais se perdoaria.
O
computador carregou-se completamente em exata meia hora, o que deixou
o Senhor do Palácio de Granito desesperado. Mas a surpresa maior
ainda estava para chegar. Nicolas descobriu, com desgosto, que a
linha de comunicação com a Sede Black e todos os comunicadores
estava cortada. Um presente de Haradja, e eles demorariam muito tempo
para saber como ela tinha feito aquilo. Ou melhor... Sua sócia. O
rapaz tentou de todos os meios possíveis estabelecer o contato,
sendo frustrado em todas as suas tentativas.
Ele
voltou para a sala principal, reencontrando-se com Seres e Erom: -Não
consegui.
-Não
conseguiu? -Questionaram os outros dois.
-As
linhas de transmissão foram cortadas. Nenhum recado entra ou sai.
Primeiro pensei que era só a Sede Black, mas não é. Tentei
contatar guardas, vigias, sem sucesso.
-Haradja.
-Murmurou Seres, levantando-se. -Alguém tem que avisá-los. Não
podem estar desprevenidos contra um ataque de Haradja.
-Eu
vou. -Alegou Nicolas.
-Sou
mais rápida. -Contestou Seres.
-Não
pode interferir, majestade. Sabe muito bem o que acontecerá se ir lá
agora. Ainda mais nesse estado de espírito. Posso fazer isso. Eu
fracassei uma vez, quero concertar o erro. Por favor, minha Deusa,
deixe-me partir.
Seres
olhou para aquele rapaz determinado e sentiu toda a sua vontade
minar. Sabia o que aconteceria se interviesse. Ficaria confinada no
seu elemento por trinta dias. Era muito tempo para um reino ameaçado.
Poderia ser mais útil essa intervenção em outro momento. Seres era
a mais calma e racional dos cinco grandes Deuses. Ela sabia que ainda
não era hora de arriscar a pele. Ainda não. Teria que confiar em
Nicolas mais uma vez.
-Vá.
Mas procure primeiro a Sede, e depois o Caminho da Ilusão. Se houver
um ataque, pegará os dois. Com certeza ao mesmo tempo. -Disse Seres,
se conformando.
-Obrigado,
majestades. -Ele agradeceu, e se virou para sair do salão.
-Nicolas.
-Chamou a deusa. Ele a olhou.
-Você
daria um ótimo imperador.
Nicolas
deu um sorriso e meneou a cabeça. Já ia se virar de novo quando
Seres o confrontou novamente. -Nicolas... Tome cuidado. E boa sorte.
Ele
fez outra reverencia e saiu da sala. Seres virou-se para Erom e
perguntou: -Já pensou em quem vai ser seu sucessor?
-Já.
Nicolas será um bom imperador. A menos, é claro, que ele não
queira e que haja alguém melhor para ficar no seu lugar.
-Vou
considerar isso na hora em que formos promover a sucessão. -Prometeu
Seres. -Mas ainda vai demorar. Ainda está firme e forte, senhor.
Ainda vai viver muitos anos. O suficiente para ver Nicolas amadurecer
um pouco mais.
-Quem
sabe.
-É,
quem sabe.
A
deusa do destino é ardilosa. Nenhum deles poderia prever o futuro
que os aguardava. Nesse instante, Nicolas embainhava a sua espada e
subia em sua moto. Em instantes estaria na estrada. Precisava de
tempo... E essa era a única coisa que ele não tinha.
Francis
chegou à frente do hidroavião e o observou de cima a baixo. Crós
saiu da maquina, junto com os outros. O olhar do rapaz caiu sobre
Alyson, e um sorriso encantador brotou em seus lábios.
Ken
notou, e olhou para a garota ao seu lado. Ela tentou retribuir com um
sorrisinho cínico, retrucando, entre dentes: -Vai ser mais difícil
do que pensei.
-Eu
queria muito poder te ajudar, mas não posso. -Comentou o rapaz,
carinhosamente.
-Concordo
plenamente.
-O
que vai dizer para ele?
-Isso
é problema meu, não acha?
-Ta,
não precisa ser rude. Só pega leve com ele.
-Por
quê?
-Levar
um fora de uma garota linda como você pode ser prejudicial. Eu
ficaria muito mal.
-Sei
disso. -Ela riu, enquanto via Francis se aproximar deles. Ele chegou
perto de Alyson e beijou sua mão, novamente. Ken pensou em agarrá-la
e lhe dar um beijo bem na frente daquele guardião sei lá do que, ou
talvez gritar: “Ela é minha namorada, eu vi ela primeiro!”,
e “Dá para tirar o olho da minha garota?”, mas achou que isso
seria grosseria, sem falar de muito imaturo.
Alyson
viu que Ken não estava muito feliz com isso tudo e retirou a mão.
Deixaria Crós resolver seus problemas e diria a ele... O que ia
dizer a ele mesmo???
-Bem,
Francis... Trouxe as pedras? -Crós perguntou, educadamente. O outro
tirou do bolso da jaqueta uma caixinha toda ornamentada, com um
dragão em alto relevo na tampa, e vários símbolos estranhos
espalhados pela sua superfície. Ele abriu a caixa, com muito
cuidado. Dentro dela havia quatro pedras, menores que uma bolinha de
gude. Um quartzo, um topázio, um berilo e uma água-marinha.
Respectivamente as pedras do ar, da terra, das asas e da água.
A
jovem olhou para as pedras com admiração, mas, subitamente,
declarou: -Estão faltando três.
-Creio
que cabe a você achá-las. -Afirmou Francis.
-A
mim? –Ela questionou, de queixo caído.
Crós
mais do que depressa cortou o assunto: -Falamos nisso depois. -Por
que você não estava em Veneza, afinal de contas?
-Tive
problemas com os avantesmas seguidores de Haradja por lá. Resolvi
despistá-los, só isso. Pena que não funcionou de nada.
-Queriam
as pedras?
-Querem
as pedras. E, pelo visto, a Alyson também. Estamos com um problemão.
E vocês tem que sair daqui o quanto antes... A derrota pode ter sido
humilhante, mas não quer dizer que eles vão deixar de voltar. Fora
que já era para estarem em Diamond à essas horas...
-Muito
obrigado, amigo. -Agradeceu Crós.
-Eu
faço o que tenho que fazer, e só. Não precisa agradecer.
-Bem,
vou ligar o hidroavião. Não demorem. -O mago replicou, dando um
adeus para Francis com a mão. Alyson sentiu que a frase tinha sido
para ela. Ken seguiu Crós, também dando um tchau com a mão (no
caso dele, até nunca mais). Sacha tentou jogar um charminho, mas não
adiantou de muita coisa. Acabou que ele só apertou a mão dela, o
que a deixou frustrada. Cloe, que não queria encarar, pois se sentia
desconfortável, e porque queria parecer educada, também apertou a
mão dele, desviando o olhar rápido e voltando para o hidroavião
junto com Sacha. Sobraram só Alyson e ele. Os dois se encararam.
-Olha,
Francis... -Começou ela. -Eu gosto muito de você... Mesmo. Mas, só
como um amigo. -Ela viu o rapaz “murchar”. Talvez tenha sido
direta demais. Ia ter que concertar o erro. -Me desculpe por ter
feito você alimentar falsas esperanças. Essa não era a minha
intenção...
-Você
gosta daquele rapaz, não é?
Ela
inconscientemente fez uma careta. Será que estava tão na cara
assim? Sem prestar atenção, respondeu: -As vezes ele é um
idiota... Mas mesmo assim não posso deixar de pensar nele.
-Acho
que estou com inveja... Nunca senti isso em anos de existência. É
estranho. Queria que você olhasse para mim como olha para ele.
É,
tava mesmo na cara. Ela suspirou fundo. Por que estava sendo tão
difícil? -Sinto muito... Mas não posso ficar com você. Não
sabendo que estaria fazendo isso por compaixão... Ou amizade.
-Eu
entendo. Cheguei tarde. -Ele a encarou com tristeza no olhar.
-Talvez
fosse tudo diferente... -Ela parou para pensar e percebeu, que se Ken
não estivesse em sua vida, seria fácil se apaixonar por aquele
jeito encantador de Francis. Porém, o cupido tinha feito a sua
parte, há muito tempo, e ela teria que partir o coração de alguém.
Alguém que a amava demais, mesmo só a conhecendo por algumas horas.
Alguém que poderia ter sido um amigo maravilhoso.
-Talvez.
-Ele concordou. -Espero que seja feliz. Que tenha êxito em sua
missão. Que viva o suficiente para conhecer o meu mundo. Ver como
ele é em tempos de paz.
Isso
era um adeus. A garota sentiu-se um monstro por um instante. Deu uma
vontade enorme de chorar, de abraçá-lo, de dizer que estava tudo
bem, que ele ficaria bem, que acharia uma garota que merecesse o seu
amor. Uma alma gêmea, para acompanhá-lo pela vida confusa de
feiticeiro.
Sentiu
seus olhos encherem-se de lágrimas. Ela olhou aquele rosto e se
perguntou se estava fazendo a coisa certa. Hesitava. Tomou coragem,
uma coragem saída de nem se sabe onde. -Não quero que sofra por
mim. Você deve ter vivido tempo o suficiente para saber que há uma
pessoa certa para cada um de nós. Espero que encontre a sua, de
coração.
Ele
sorriu (uma poeira de felicidade num mar de desespero), e disse,
docemente: -Vou me esforçar.
-Promete
pra mim que não vai fazer nenhuma besteira?
-Juro
pela minha alma. E por você.
Alyson
puxou os leques que Francis havia dado do cinto que os prendia e
estendeu-os para ele.
-Fique
com eles... Para se lembrar que em algum lugar do Mundo Real existe
alguém que gosta muito de você.
Ela
o abraçou bem forte. -Se cuida.
-Você
também.
E
os dois se separaram, para nunca mais se encontrarem novamente. Pelo
menos, era o que ela achava. Alyson subiu no hidroavião, e deu um
sinal de adeus. A máquina decolou, ganhando o céu estrelado, sem
uma nuvem. Francis viu-a sumir da sua vista. Caiu de joelhos no pasto
verdejante, e chorou até as lágrimas secarem. Muitos parisienses
disseram terem ouvido um falcão cantar até o amanhecer, uma melodia
triste que parecia chorosa aos ouvidos mortais. Era muito mais que
isso. A ave cantava, para aqueles que podiam ouvir, uma história de
amor que nunca havia começado. Cantava a dor de um feiticeiro que,
em vários anos de vida, se apaixonara por alguém que nunca poderia
ter, e que sofreria a sua falta até o fim dos seus dias.
~Kit Black
Nenhum comentário:
Postar um comentário